Sobre o particípio duplo (triplo)

1. POLÉMICA ‘MORTO/MATADO’. Nas chamadas formas nominais dos verbos, o particípio passado (passivo para os verbos transitivos) assume grande importância quando se trata dos tais tipos de conjugações em que entram os verbos auxiliares (vide postagem anterior). Por falar em particípio passado, lembrei-me da rubrica n.º 68  do meu livro Tento na Língua! – 1, que trata precisamente do assunto, como se pode ver a seguir, no ponto 2. Motivação para carta/mail foi a notícia no Correio da Manhã de 09/08/12 com chamada na primeira página: “Iva Domingues troca gramática”. ‘Ter morto’ ou ‘ter matado’, eis a questão da polémica noticiada. Não quis meter-me na discussão, porque não vi o uso que a senhora jornalista fez do particípio. A seguir se transcreve, pois, a referida rubrica, na íntegra e acrescentada de um P.S.

2. PARTICÍPIO DUPLO: UM CASO ESTRANHO…

“68. PARTICÍPIO DUPLO : UM CASO ESTRANHO…

O particípio passado, a que alguns gramáticos também chamam passivo (mas, passivo… só nos verbos transitivos, claro…), em alguns verbos tem dupla forma: uma regular, formada na própria língua, outra irregular, que já vem do particípio latino. Exemplo: soltado, solto. As listas das gramáticas referem todas um exemplo de verbo – aceitar – cujo particípio irregular tem dupla forma: aceito, aceite. Tem, portanto, um triplo particípio: aceitado, aceito, aceite.

Desde que me lembro, as gramáticas apresentam, para o duplo particípio, uma regra que admite muitas excepções: a forma regular usa-se com os auxiliares ter e haver; a irregular com ser e estar.

Em todas as listas que consultei, as duas (três) formas do particípio, a regular e a(s) irregular(es) têm o mesmo radical do respectivo verbo: aceitado, aceite (aceito); rompido, roto; absorvido, absorto, etc. Apenas um verbo – matar – recorre a outro verbo com radical diferente – morrer – para a forma irregular do particípio. Fenómeno linguístico estranho. Tanto mais estranho quanto é certo que um verbo transitivo – matar –, brutalmente activo!, recorre a um verbo intransitivo (cujo sujeito não tem mais do que… sujeitar-se, aceitar), para lhe pedir emprestado o seu particípio, que passa a ser transitivo, activo. Com a agravante de que nos falantes se revela a tendência crescente para substituir a forma regular – matado – pela irregular emprestada – morto. Segundo as regras gramaticais, repetidas nos compêndios de década em década, é bem correcto dizer-se: ter matado, tinha matado. Bem correcto e até bem mais expressivo!

E o mais curioso é que o fenómeno linguístico português não se dá nas línguas irmãs da nossa. Vejam se algum espanhol é capaz de dizer habia muerto por habia matado. O verbo perdia aquela força brutal que lhe é própria… E é o que acontece ao verbo português. Ora vejam qual a forma mais expressiva:

Os bandidos tinham morto toda aquela gente!

Os bandidos tinham matado toda aquela gente!

É caso para perguntar: Porquê o pejo, o medo do particípio matado?… Não será este um fenómeno a merecer estudo por parte de psicossociolinguistas?” (TENTO NA LÍNGUA! – 1, rubrica 68, Plátano Editora)

P.S. (acrescentado agora): Apesar de considerar insensato e obsceno o Acordo Ortográfico, talvez não deixem de ter razão os contestatários de Iva Domingues. Só me parece que não deviam impor a obrigatoriedade do uso, porque a prática de usar ‘morto’ em vez de ‘matado’ generalizou-se, certamente, por uma razão psicossociolinguística…

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