2. PARTICÍPIO DUPLO: UM CASO ESTRANHO…
“68. PARTICÍPIO DUPLO : UM CASO ESTRANHO…
O particípio passado, a que alguns gramáticos também chamam passivo (mas, passivo… só nos verbos transitivos, claro…), em alguns verbos tem dupla forma: uma regular, formada na própria língua, outra irregular, que já vem do particípio latino. Exemplo: soltado, solto. As listas das gramáticas referem todas um exemplo de verbo – aceitar – cujo particípio irregular tem dupla forma: aceito, aceite. Tem, portanto, um triplo particípio: aceitado, aceito, aceite.
Desde que me lembro, as gramáticas apresentam, para o duplo particípio, uma regra que admite muitas excepções: a forma regular usa-se com os auxiliares ter e haver; a irregular com ser e estar.
Em todas as listas que consultei, as duas (três) formas do particípio, a regular e a(s) irregular(es) têm o mesmo radical do respectivo verbo: aceitado, aceite (aceito); rompido, roto; absorvido, absorto, etc. Apenas um verbo – matar – recorre a outro verbo com radical diferente – morrer – para a forma irregular do particípio. Fenómeno linguístico estranho. Tanto mais estranho quanto é certo que um verbo transitivo – matar –, brutalmente activo!, recorre a um verbo intransitivo (cujo sujeito não tem mais do que… sujeitar-se, aceitar), para lhe pedir emprestado o seu particípio, que passa a ser transitivo, activo. Com a agravante de que nos falantes se revela a tendência crescente para substituir a forma regular – matado – pela irregular emprestada – morto. Segundo as regras gramaticais, repetidas nos compêndios de década em década, é bem correcto dizer-se: ter matado, tinha matado. Bem correcto e até bem mais expressivo!
E o mais curioso é que o fenómeno linguístico português não se dá nas línguas irmãs da nossa. Vejam se algum espanhol é capaz de dizer habia muerto por habia matado. O verbo perdia aquela força brutal que lhe é própria… E é o que acontece ao verbo português. Ora vejam qual a forma mais expressiva:
Os bandidos tinham morto toda aquela gente!
Os bandidos tinham matado toda aquela gente!
É caso para perguntar: Porquê o pejo, o medo do particípio matado?… Não será este um fenómeno a merecer estudo por parte de psicossociolinguistas?” (TENTO NA LÍNGUA! – 1, rubrica 68, Plátano Editora)
P.S. (acrescentado agora): Apesar de considerar insensato e obsceno o Acordo Ortográfico, talvez não deixem de ter razão os contestatários de Iva Domingues. Só me parece que não deviam impor a obrigatoriedade do uso, porque a prática de usar ‘morto’ em vez de ‘matado’ generalizou-se, certamente, por uma razão psicossociolinguística…