“Que” sujeito e o verbo

Tinha acabado de ler o jornal e aquele último parágrafo do editorial, primeiro texto, massacrava-me o miolo gramatical. Vejam:

É daqueles episódios que acabará por penalizar ambos […]”. (Primeiro texto, início do último parágrafo,  Editorial, DN 26/9/2010)

Na oração relativa, sendo  o sujeito ‘que’ com antecedente no plural, não dizem as gramáticas, desde tempos imemoriais, que o verbo concorda com o antecedente do relativo? E qual é o antecedente? Sem dúvida, ‘episódios’. Então, se as gramáticas não estão erradas, o verbo terá de ser ‘acabarão’. Ou não? Mas este é um erro que grassa por aí como manteiga em pano…

Cheguei a casa e pus-me a ouvir “Amor é”. Sempre que posso, o Professor e a Inês têm-me lá. Não só para “a missa do Amor” dita pelo Sábio ajudado pela Inês, como para ouvir alguém na Rádio que trata por tu a Língua Portuguesa usando-a com aquela expressão e clareza que antigamente se aprendiam na escola e na leitura de bons autores. Apenas com uma pequena reserva: os finais, às vezes, da melodia prosódica em termo da frase, de modo que seja  bem entendível até ao último fonema, o ultimozinho mesmo, tudo bem pronunciado: palavra, sílaba até ao final da última. Mas isso, na Antena 1, só locutores como Filomena Crespo ou Júlio Isidro, com a sua boa voz, usada, na locução, modelar e modularmente…

Eis senão quando,…

Eu sou daqueles que acha” (“Amor é”, Antena 1, 26/9/2010).

Pois! O mais pintado professor, de português que fosse, está sempre sujeito a deixar-se contaminar pelo erro que por aí anda generalizado: “Eu sou dos que faz”; “Eu sou dos que faço (também se usa muito por aí); “Tu és daqueles que fazes”; “Nós somos dos que fazemos”. Tudo errado! Então como deve ser? Como se ensinava antigamente e as gramáticas ainda hoje registam. Vejam. Sintaxe, concordância do verbo quando o ‘que’ é sujeito: “Eu sou dos que acham”, “Tu és daqueles que fazem”,  “Nós somos dos que amam a sério”, etc.

Para não se enganarem, não se esqueçam de, antes que o verbo saia mal, uma rápida espreitadela ao antecedente do ‘que’.

O nosso muito obrigado, ao Professor, extensivo à boa Inês!

(E a propósito, para quando uma abordagem, à séria, do sexo e do amor dos mais velhinhos?! Também não são gente?! Já não amam? Não têm sexo?…)

Que e quem: concordância do verbo

Pessoa amiga abeirou-se de mim para me pôr a questão de saber se o verbo da oração relativa a seguir sublinhada vai para o singular ou para o plural:

As obras afectam sempre quem as pratica.

Vejam bem que a pergunta foi assim formulada: ‘quem as pratica’ ou ‘ quem as praticam’? Nunca: ‘quem as praticam’, porque o pronome ‘quem’, sujeito, leva sempre o verbo para o singular. Não esqueçam: ‘sempre’!

Comecemos por analisar a oração subordinada relativa, acima bem realçada::
Sujeito – ‘quem’
Predicado – ‘pratica’ .
Complemento directo – ‘as’ (pronome pessoal em vez do nome substantivo ‘obras’).
Mas, acerca de ‘quem’, convém dizer mais alguma coisa, pois se trata de um caso especial. É que o dito pronome pode exercer, ao mesmo tempo, duas funções sintácticas, como no caso presente: sendo sujeito da subordinada relativa, como fica dito, é também complemento directo da subordinante que, analisada sintacticamente, será:
Sujeito – ‘As obras’
Predicado – ‘afectam’
Complemento directo – ‘quem’.
Compl. circunstancial de tempo – ‘sempre’
Isto, porque ‘quem’ = ‘aqueles (ou aquelas) que’… Se reescrevermos a frase com esta alteração, o pronome demonstrativo ‘aqueles’ ou ‘aquelas’ será o complemento directo da subordinante; e o sujeito da subordinada será o pronome relativo ‘que’.
Com o relativo ‘que’, tal não pode acontecer, porque ele se relaciona sempre com um antecedente, expresso ou subentendido.

Vejamos então a mesma frase, agora reescrita com substituição do relativo ‘quem’ e comparem-se as duas versões:

As obras afectam sempre aqueles que as praticam

Analisemos a subordinada relativa:
Sujeito – ‘que’ (referido a ‘aqueles’, seu antecedente)
Predicado – ‘praticam’ (no plural porque o predicado de uma relativa começada por ‘que’ concorda sempre com o antecedente desse relativo (no caso: ‘aqueles’)
Complemento directo – ‘as’ (pronome pessoal, pelo nome ‘obras’) .

É claro que, se o pronome invariável ‘que’ for substituído pelo correspondente variável (o qual, a qual, os quais, as quais), o verbo não terá mais do que concordar com este, não precisando de olhar para o antecedente.
Estão vocês a ver, caros leitores? Não custou assim tanto! E, se calhar, alguém aprendeu algo…

Mas, tratando-se de ‘que’ e ‘quem´ em expressão de realce ou expletiva (= que não é precisa para o essencial do sentido da frase), a questão é outra. Um exemplo, na forma afirmativa e na forma negativa:

Foi ele que disse. Não foi ele que disse.

Na forma afirmativa, podemos considerar que o essencial da afirmação consiste em apenas duas palavras: ele e disse. Na forma negativa, o essencial consiste em três palavras, tendo a mais o advérbio que a torna negativa: ele não disse. Podemos daí concluir que a expressão ‘Foi… que…’ se emprega apenas para decorar a frase, para lhe dar ênfase; pode prescindir-se dela para termos o sentido essencial da afirmação ou da negação. E, neste caso, o verbo varia conforme o sujeito e o ‘que’ mantém-se invariável: fui eu que disse, foste tu que disseste, foi ele (ela, você) que disse, fomos nós que dissemos, fostes vós que dissestes, foram eles (elas, vocês) que disseram.

Mas, atenção, se, na mesma construção expletiva ou enfática, o ‘que’ é substituído por ‘quem’ a coisa é diferente, porque ‘quem’, seja ou não seja expletivo, leva sempre o verbo para a 3ª pessoa do singular: fui eu quem disse, foste tu quem disse, foi ele (ela, você) quem disse, fomos nós quem disse, fostes vós quem disse, foram eles (elas, vocês) quem disse.