Falar com maiúsculas?!

Era na madrugada de segunda para terça (19/01/09). Não retive o nome do programa da Antena 1, em que o convidado era Válter Hugo Mãe (perdão, válter hugo mãe, ou se calhar melhor: valter hugo mãe). Às tantas, dou com os meus ouvidos a ouvirem, da boca do convidado, esta bárbara sentença: “Não se fala com maiúsculas”, acho que para justificar a sua escrita só com minúsculas, a começar pelo próprio nome, e outras barbaridades mais prosódicas, que têm a ver com a pontuação, mais que saramaguiana.

Com que então, não se fala com maiúsculas? O que quererá dizer que se fala, sim, mas com minúsculas. Isto para justificar, pois, a sua escrita só com minúsculas, “desnormada”, não só no formato das letras – minúscula/maiúscula – como também no seu uso “descriterioso” dos sinais diacríticos. Na poesia, eu até estou em aceitar. Porque, se há o verso e os espaços, não fazem muita falta a maiúscula e os diacríticos, à excepção, está claro, dos acentos (se o senhor Hugo se lembra de começar a escrever sem os acentos da norma, não deixaria de estar  a ser coerente com o seu estilo subversivo, caótico, anárquico, de inventor, para a escrita, de excentricidades gratuitas de brincalhão-mais-que-epígono de Saramago).

O que me admira um pouco (ou talvez muito) é a demagogia crítica em que se deixam embarcar Jotas Eles e quejandos seus apaniguados…

Mas, voltando à vaca fria das maiúsculas, conviria perguntar, ao senhor Hugo (perdão, senhor hugo),  ele que, pelos vistos só falará com minúsculas…,  se ele não sabia (um inventor de tal facúndia devia saber) – se ele não sabe que não se fala com letras – maiúsculas ou minúsculas. Fala-se com sons, com fonemas, que não têm nada que ser minúsculos ou maiúsculos. Isso tem a ver, sim,  com o escrito, com o gráfico, com  os grafemas, com as letras.  E, para essas, há normas que, em texto discursivo, são de obrigação colectiva. Vejam só: se cada escritor resolvesse agora usar na sua escrita o seu sistema diacrítico privado, o que é que teríamos nas livrarias? Uma Babel da escrita? Uma bagunça “desuniformizada”?

Não seria caso de se propor ao senhor hugo que, dada a expansão dos seus livros pelo mundo, nomeadamente “na Líbia e na Tunísia”, como ele disse no tal programa, – propor-lhe que fomente a invenção de um teclado que permita, por exemplo, escrever as letras de pernas para o ar?…

Queria dizer ao Senhor Hugo Mãe (perdão, senhor hugo mãe) que não auguro futuro à sua brincadeira, incluindo a sua esquisita diacrítica.

Mas também não fique por dizer que a excentricidade, a extravagância, o exibicionismo da escrita anárquica também deve muito à guarida que lhe é dada na comunicação social, e ainda mais na comunicação especificamente literária em jornais como o JL. Guarida “literária”? “Pedagógica”? Ou simplesmente demagógica?

Adenda à postagem “A polémica e o insulto”

Tendo em vista o penúltimo parágrafo, relativo à pontuação, achei oportuno acrescentar algo. O problema da pontuação remete para aquilo a que os linguistas chamam sinais diacríticos e volto a dizer que me parece que o seu uso mais normativo, em Caim como em outras grandes obras anteriores do Autor (v.g. O Evangelho), não só não prejudicariam o estilo, como, ainda, aumentariam a clareza do discurso e, em consequência, facilitariam a leitura. Lendo Caim, não raras vezes me aconteceu parar para ver se  determinada vírgula era interrogativa ou não. E reparei que em muitos casos, o narrador vê-se obrigado, para confirmar a interrogação, usar a intercalada “respondeu”, “perguntou” e outras. Estaria também resolvido o problema didáctico do ensino/aprendizagem, quando, na escola, se recorre a textos saramaguianos.  Mesmo o uso da maiúscula em nomes próprios. Mas, repito,  a genialidade da narrativa lá está sempre, seja com o desvio diacrítico original ou fosse com a pontuação de uso universal.

A polémica e o insulto

As palavras, na sua forma, na sua significação e no seu uso, têm muito que se lhes diga; precisam de ser bem definidas antes de serem usadas, seja em monólogo, em diálogo, ou em debate. Quem estudou um pouco de Lógica, devia saber isto e mais coisas.

Vem isto a propósito de Saramago e o seu Caim, da Bíblia e o seu Deus, e a polémica que daí vem. Dizem alguns crentes, a começar pelos que se consideram guardiões da crença e da fé em Deus, que o que escreve Saramago, o que ele diz, é insulto à fé dos crentes (ou aos crentes da fé), confundindo polémica, opinião e insulto. Antes de mais, vamos lá então definir.

Polémica s. f. discussão acesa, controvérsia; debate (Do grego polemike, feminino do adjectivo que deriva do substantivo pólemos que significa guerra).

Insulto s. m. (Do lat medieval insultu). O verbo insultar, do lat. insultare (in+saltare com o afrouxamento do ‘a’ em ‘u’ = saltar sobre, atacar, injuriar).

Opinião s. f. modo de ver pessoal ou subjectivo; parecer emitido sobre um assunto…

(Dos dicionários)

E agora vamos lá ver.

O senhor A diz que isto é assim. O senhor B diz que isto é assado

O senhor A diz que o que diz o senhor B é insulto ao que aquele diz e crê.

E então podemos perguntar. Se o que o senhor B diz de uma coisa é insulto ao senhor A pelo que ele diz dessa coisa, não será também insulto ao senhor B o que diz dessa mesma coisa o senhor A?

Mais concretamente. O senhor A diz que Deus existe. O senhor B diz que deus não existe. O senhor A diz que o senhor B está a insultá-lo ao dizer que Deus não existe.. Então e o senhor A não estará a insultar o senhor B ao dizer que Deus existe? São duas opiniões, contraditórias, subjectivas  que, no nosso caso têm, uma e outra, como referência a Bíblia, que o senhor A diz que tem Deus por autor e o senhor B diz que é da autoria de homens e está a ser lógico: não pode ter Deus por autor, porque ele não existe.

Então o melhor será, na base da Democracia e da Lógica, o senhor A e o senhor B, em liberdade de pensamento e expressõo, poderem expressar a sua opinião, sem que alguém possa arrogar-se o direito de ter mais direito de livre expressão do que o outro… Deixem o Caim de Saramago (e o da Bíblia) cumprir o seu destino de uma errância sem limite, como, de resto, lhe está traçado pelo autor da Bíblia, seja ele quem for.

Uma narrativa genial que só me põe um problema: a pontuação. Problema que, em minha modesta opinião, sem afectar o estilo e mesmo decerto a barroca fluidez do discurso,  podia ser resolvido pelo próprio Autor… Com duas vantagens: 1) não dificultava, aos alunos de português, a aprendizagem da pontuação normativa, e 2) tornaria o discurso mais claro e assim facilitaria a leitura.

Comentário complementar. Este Caim de Saramago assume notábvel relevo na linha satírica tradicional da nossa literatura. Camões, Vieira ( a quem Saramago tanto deverá felizmente), Eça, o próprio José da Silva o Judeu que foi queimado na fogueira da Inquisição, e da qual Saramago se livrou (pelo menos por enquanto!). E tantos outros, mesmo já no escárnio e maldizer medieval. O próprio Gil Vicente. Mas aquele de que me lembrei logo, ao começar a ler Caim, foi Guerra Junqueiro e a sua A Velhice do Padre Eterno contra a qual se insurgiram os guardiões infalíveis da Verdade/Dogmática. E fizeram constar que o velhinho Poeta morreu com os sacramentos… Tem cuidado, Saramago! O que te valerá é que a Anjo da Guarda Pilar não deixará…

Uma narrativa genial que só me põe um problema: a pontuação. Problema que, em minha modesta opinião, sem afectar o estilo e mesmo decerto a barroca fluidez do discurso,  podia ser resolvido pelo próprio Autor… Com duas vantagens: 1. Não dificultava, aos alunos de português, a aprendizagem da pontuação normativa; 2. Tornaria o discurso mais claro e assim facilitaria a leitura.

Sinais diacríticos e pontuação

A propósito, talvez conviesse lembrar… De dicionários e enciclopédias, tirámos o registo de conceitos.

Diacrítico, adj. (gr. diakritikos). Gram.  Designativo de sinais gráficos destinados a distinguir a modulação das vogais: a vírgula, o acento agudo, o ponto, etc., são sinais diacríticos. || Med. Diz-se dos sinais com que uma doença se distingue de outra.

“Os sinais diacríticos não representam sons, mas auxiliam a representação dos fonemas vocabulares. Uns são notações ortográficas ou léxicas: acento agudo, acento grave, cedilha, etc. […]. Outros são sinais gráficos ou notações que têm por fim discriminar os diversos elementos sintácticos da frase, com vista à clareza, às pausas e modulações próprias na leitura e denominam-se sinais de pontuação: ponto final (.), vírgula (,), ponto e vírgula(,), dois pontos (:), ponto de interrogação (?), ponto de admiração ou de exclamação (!) e reticências (…). São também de uso frequente os sinais gráficos: aspas (“), traço de união ou hífen (-), travessão ( – ), asterisco ( *), parêntese ( () ), parágrafo (§) e chaves ( { }).

“Nos manuscritos romanos não se usava pontuação (P.), que apareceu só com as escritas cursivas. Segundo S.to Isidoro, o ponto ao cimo da regra indicava pausa final; ao meio, pausa média; e ao fundo, pausa breve. Com a divulgação das escritas minúsculas, tornou-se difícil distinguir a posição do ponto, preferindo-se combinações deste com a vírgula. Para facilitar a leitura e evitar equívocos, Alcuíno aconselhou o uso de sinais de P. nos manuscritos carolinos. Não havia, porém, sistema fixo e o número e uso de sinais de P. variou com o tempo e lugares, sendo, muitas vezes, arbitários. A finalidade da P. nos textos antigos e medievais era realçar os elementos rítmicos da frase, enquanto nos tempos modernos se prefere distinguir os elementos lógicos e gramaticais, além de marcar as pausas a fazer na leitura e recitação e as inflexões e modulações da voz que tornem mais expressivos os pensamentos, sentimentos e figuras contidos no texto. Estão em uso os seguintes sinais: […]”
([Prof. Doutor] A[velino]. de Jesus da Costa, in Encicl. Verbo Luso-Brasileira da Cultura, Edição  Século XXI)

“A teoria da pontuação é vária, e no seu uso não há uniformidade entre os nossos escritores. Uns têm pontuação mais forte e abundante, outros mais frouxa e apoucada” (Carlos Pereira, in Gramática Expositiva, Curso Superior, p. 333, cit. In G.E.P. e B.)  “A pontuação, desordenada durante os primeiros tempos da tipografia, foi quase regularizada por Aldo Manúcio, ao findar do séc. XV. ”
(Gr.  Enc. Port. e Bras.)