Sobre o particípio duplo (triplo)

1. POLÉMICA ‘MORTO/MATADO’. Nas chamadas formas nominais dos verbos, o particípio passado (passivo para os verbos transitivos) assume grande importância quando se trata dos tais tipos de conjugações em que entram os verbos auxiliares (vide postagem anterior). Por falar em particípio passado, lembrei-me da rubrica n.º 68  do meu livro Tento na Língua! – 1, que trata precisamente do assunto, como se pode ver a seguir, no ponto 2. Motivação para carta/mail foi a notícia no Correio da Manhã de 09/08/12 com chamada na primeira página: “Iva Domingues troca gramática”. ‘Ter morto’ ou ‘ter matado’, eis a questão da polémica noticiada. Não quis meter-me na discussão, porque não vi o uso que a senhora jornalista fez do particípio. A seguir se transcreve, pois, a referida rubrica, na íntegra e acrescentada de um P.S.

2. PARTICÍPIO DUPLO: UM CASO ESTRANHO…

“68. PARTICÍPIO DUPLO : UM CASO ESTRANHO…

O particípio passado, a que alguns gramáticos também chamam passivo (mas, passivo… só nos verbos transitivos, claro…), em alguns verbos tem dupla forma: uma regular, formada na própria língua, outra irregular, que já vem do particípio latino. Exemplo: soltado, solto. As listas das gramáticas referem todas um exemplo de verbo – aceitar – cujo particípio irregular tem dupla forma: aceito, aceite. Tem, portanto, um triplo particípio: aceitado, aceito, aceite.

Desde que me lembro, as gramáticas apresentam, para o duplo particípio, uma regra que admite muitas excepções: a forma regular usa-se com os auxiliares ter e haver; a irregular com ser e estar.

Em todas as listas que consultei, as duas (três) formas do particípio, a regular e a(s) irregular(es) têm o mesmo radical do respectivo verbo: aceitado, aceite (aceito); rompido, roto; absorvido, absorto, etc. Apenas um verbo – matar – recorre a outro verbo com radical diferente – morrer – para a forma irregular do particípio. Fenómeno linguístico estranho. Tanto mais estranho quanto é certo que um verbo transitivo – matar –, brutalmente activo!, recorre a um verbo intransitivo (cujo sujeito não tem mais do que… sujeitar-se, aceitar), para lhe pedir emprestado o seu particípio, que passa a ser transitivo, activo. Com a agravante de que nos falantes se revela a tendência crescente para substituir a forma regular – matado – pela irregular emprestada – morto. Segundo as regras gramaticais, repetidas nos compêndios de década em década, é bem correcto dizer-se: ter matado, tinha matado. Bem correcto e até bem mais expressivo!

E o mais curioso é que o fenómeno linguístico português não se dá nas línguas irmãs da nossa. Vejam se algum espanhol é capaz de dizer habia muerto por habia matado. O verbo perdia aquela força brutal que lhe é própria… E é o que acontece ao verbo português. Ora vejam qual a forma mais expressiva:

Os bandidos tinham morto toda aquela gente!

Os bandidos tinham matado toda aquela gente!

É caso para perguntar: Porquê o pejo, o medo do particípio matado?… Não será este um fenómeno a merecer estudo por parte de psicossociolinguistas?” (TENTO NA LÍNGUA! – 1, rubrica 68, Plátano Editora)

P.S. (acrescentado agora): Apesar de considerar insensato e obsceno o Acordo Ortográfico, talvez não deixem de ter razão os contestatários de Iva Domingues. Só me parece que não deviam impor a obrigatoriedade do uso, porque a prática de usar ‘morto’ em vez de ‘matado’ generalizou-se, certamente, por uma razão psicossociolinguística…

Verbos auxiliares

Na postagem mais visitada deste blogue – “Pretérito: perfeito, imperfeito, mais-que-perfeito” – fala-se de tempos compostos dos verbos , tempos que se formam recorrendo a um verbo auxiliar que em português é o verbo ter ou o verbo haver.Mas antes de continuarmos, convém explicar o que é isso de um verbo auxiliar. Auxiliares são aqueles verbos que servem para auxiliar (pois claro) um qualquer verbo – principal – em determinados tipos de conjugação. E quais são as conjugações que se podem formar com um verbo auxiliar? Eis:

1. Tempos compostos:  auxiliares ter e haver. Haver, como auxiliar, está caindo em desuso. Mas usa-o, por vezes, quem quer dar ao discurso um aspecto arcaizante (questão de estilo. pois).

2. Voz passiva: auxiliar –  ser

3. Conjugação perifrástica activa: auxiliares – ter e haver

4. Conjugação perifrástica passiva: auxiliares – ter, haver e ser

Vamos então pegar num verbo  e fazê-lo passar, com alguns exemplos, por estas situações conjugacionais. O verbo amar (tinha de ser!). Se o visitante der por falta de alguma, tem sempre a possibilidade de consultar uma boa gramática…

 1. Tempos compostos.

Pretérito perfeito do indicativo: eu tenho amado, tu tens amado, ele tem amado, nós temos amado, vós tendes amado, eles têm amado

Pretérito perfeito do conjuntivo: (Que) eu tenha amado, que tu tenhas amado, que ele tenha amado, que nós tenhamos amado, que vós tenhais amado, que eles tenham amado.

Mais-que-perfeito do indicativo: eu tinha amado, tu tinhas amado, ele tinha amado, nós tínhamos amado, vós tínheis amado, eles tinham amado

Mais-que-perfeito do conjuntivo: eu tivesse amado, tu tivesses amado, ele tivesse amado, nós tivéssemos amado, vós tivésseis amado, eles tivessem amado.

Futuro perfeito do indicativo: eu terei amado, tu terás amado, ele terá amado, nós teremos amado, vós tereis amado, eles terão amado.

Futuro perfeito do conjuntivo: se eu tiver amado, se tu tiveres amado, se ele tiver amado, se nós tivermos amado, se vós tiverdes amado, se eles tiverem amado.

Condicional: eu teria amado, tu terias amado, ele teria amado, nós teríamos amado, vós teríeis amado, eles teriam amado.

Infinitivo  pessoal: ter (eu) amado, teres (tu) amado, ter (ele) amado, termos (nós) amado, terdes (vós) amado, terem (eles) amado.

Infinitivo impessoal: ter amado.

Gerúndio: tendo amado.

Obs.: em qualquer verbo, são estes tempos que têm a forma conjugacional de tempo composto.

2. Voz passiva. Rigorosamente, só têm voz passiva os verbos transitivos e o verbo auxiliar da voz passiva é, sempre, o verbo ser. Vejam:  Só se pode dar forma passiva a uma frase que tenha complemento directo (de verbo transitivo, pois claro). Na conjugação passiva, é o auxiliar – ser – que se flexiona e junta-se-lhe o particípio passado do verbo a conjugar, concordando, em género e numero, como adjectivo que é, com o sujeito: Eu sou amado. Uma mulher diz/escreve: Eu sou amada. Nós somos amados. Nós somos amadas. Assim em todos os tempos e modos.

Atenção às  chamadas  formas nominais compostas. Infinitivo pessoal composto: eu ter sido amado(a), etc,; infinitivo impessoal composto: ter sido amado(a); gerúndio: tendo sido amado(a).

3. Conjugação perifrástica activa. Flexiona-se o auxiliar – ter ou haver – seguido da preposição ‘de’ e do infinitivo do verbo principal: eu tenho de estudar ou eu hei-de estudar. Assim em todas as pessoas, em todos os tempos e modos. É, pois, o verbo auxiliar que se flexiona, de modo a exprimir: pessoa, número, tempo e modo: eu tenho de estudar, eu hei-de estudar – é o verbo ‘estudar’ primeira pessoa do singular do presente do indicativo (eu tenho…).

4. Conjugação perifrástica passiva. É também o mesmo verbo auxiliar – ter ou haver – que se flexiona; e o verbo principal está no infinitivo passivo: Eu hei-de ser amado, eu tenho de ser amado, concordando o adjectivo verbal com o sujeito, como na voz passiva simples. Os livros hão-de ser lidos. As mulheres e os homens, os meninos e as meninas, adultos e crianças, todos hão-de ser amados

Observação final: É claro, meus caros visitantes, que este apontamento é só para ajudar:  não é para evitar uma consulta (ou muitas consultas) a uma boa gramática…

Correio da Manhã / Correio do Leitor

Exmos Senhores,

Não sou leitor assíduo do vosso jornal, mas, desde que, num levantamento que fiz da imprensa portuguesa que continua a ortografar em português, fiquei surpreendido pela positiva, ao verificar que entre os quatro diários que se recusam a ‘adotar’ “uma coisa obscena chamada Acordo Ortográfico”, na expressiva opinião de Vasco Graça Moura (vide DN 29/06/11, p. 54: crónica ‘O reino da insensatez’) – entre esses diários e mais um semanário –, o Correio da Manhã é dos que continuam (e muito bem na minha opinião!) a ser fiel à língua de Camões, ortografada segundo a grande reforma de 45. Acho que compreendo as vossas razões – que me parecem ser: o respeito por um grande público de “legência” adquirido e espero que sejam também as ‘minhas’ razões por que me recuso e recusarei a ‘adotar’ um AO como este, que considero uma imposição, subservientemente acatada por governantes nossos insensatos e se calhar ignorantes – colonialismo ao invés: ex-colónia querendo impor à ex-metrópole.

A motivação para esta carta/email, está na notícia com chamada na primeira página da vossa edição de hoje – 09/08/12: “Iva Domingues troca gramática”. Não posso meter-me na discussão, porque não vi o uso que a apresentadora fez do particípio. Mas lembrei-me da rubrica 68 do meu livro Tento na Língua – 1 (Plátano Editora), a qual junto já a seguir.

Com os meus melhores cumprimentos e votos de que continuem, já que, em minha modesta mas firme opinião, continuam no caminho certo.

“68. PARTICÍPIO DUPLO : UM CASO ESTRANHO…

O particípio passado, a que alguns gramáticos também chamam passivo (mas, passivo… só nos verbos transitivos, claro…), em alguns verbos tem dupla forma: uma regular, formada na própria língua, outra irregular, que já vem do particípio latino. Exemplo: soltado, solto. As listas das gramáticas referem todas um exemplo de verbo – aceitar – cujo particípio irregular tem dupla forma: aceito, aceite. Tem, portanto, um triplo particípio: aceitado, aceito, aceite.

Desde que me lembro, as gramáticas apresentam, para o duplo particípio, uma regra que admite muitas excepções: a forma regular usa-se com os auxiliares ter e haver; a irregular com ser e estar.

Em todas as listas que consultei, as duas (três) formas do particípio, a regular e a(s) irregular(es) têm o mesmo radical do respectivo verbo: aceitado, aceite (aceito); rompido, roto; absorvido, absorto, etc. Apenas um verbo – matar – recorre a outro verbo com radical diferente – morrer – para a forma irregular do particípio. Fenómeno linguístico estranho. Tanto mais estranho quanto é certo que um verbo transitivo – matar –, brutalmente activo!, recorre a um verbo intransitivo (cujo sujeito não tem mais do que… sujeitar-se, aceitar), para lhe pedir emprestado o seu particípio, que passa a ser transitivo, activo. Com a agravante de que nos falantes se revela a tendência crescente para substituir a forma regular – matado – pela irregular emprestada – morto. Segundo as regras gramaticais, repetidas nos compêndios de década em década, é bem correcto dizer-se: ter matado, tinha matado. Bem correcto e até bem mais expressivo!

E o mais curioso é que o fenómeno linguístico português não se dá nas línguas irmãs da nossa. Vejam se algum espanhol é capaz de dizer habia muerto por habia matado. O verbo perdia aquela força brutal que lhe é própria… E é o que acontece ao verbo português. Ora vejam qual a forma mais expressiva:

Os bandidos tinham morto toda aquela gente!

Os bandidos tinham matado toda aquela gente!

É caso para perguntar: Porquê o pejo, o medo do particípio matado?… Não será este um fenómeno a merecer estudo por parte de psicossociolinguistas?” (TENTO NA LÍNGUA! – 1, rubrica 68, Plátano Editora)

P.S. (acrescentado agora): Apesar de considerar insensato e obsceno o AO, talvez não deixem de ter razão os contestatários de Iva Domingues. Só me parece que não deviam impor a obrigatoriedade, porque a prática de usar morto em vez de matado generalizou-se, certamente, por uma razão psicossociolinguística. (A.M.)

“Presidenta”: extravagância caprichosa, gratuita e inútil

Pretender que presidenta seja a forma feminina de presidente não é mais do que… uma pretensão, extravagante, caprichosa, gratuita e inútil (e talvez antifeminista…). Ao mesmo tempo, revela um certo desconhecimento do processo evolutivo-etimológico das línguas em geral, e, em particular, da nossa língua – a língua portuguesa. Feminino forçado. E nem me venham dizer que a notoriedade de quem lançou, por aqui, a extravagante ideia, ou a sua relação com o falecido Nobel, só por isso, para tanto lhe dá autoridade. Nem tão-pouco, no segundo caso mais conhecido, o facto de ter sido a primeira mulher eleita para o cargo de presidente do Brasil, nem tão pouco isso, lhe dá a faculdade de se arrogar o direito de poder impor tal extravagância linguística aos falantes que lhe deram o voto para a presidência; considerando, essas agora ilustres senhoras, que se trata de atitude legítima de militância feminista. De maneira nenhuma. Já diremos porquê. Mas, antes de prosseguir, que fique bem claro, aqui, o meu grande respeito por essas duas figuras femininas, grandes mulheres progressistas, cada uma pelas suas razões, cada uma na sua circunstância. (Se feministas correctas, isso é outra coisa…).

“Presidenta” porque é mulher? Não! Por motivo nenhum. Por motivo gramatical, muito menos! E é simples. Presidente é o particípio presente do verbo presidir. Particípio, que também em português é uniforme, o que em linguagem gramatical quer dizer que tem uma única forma para os dois géneros: o presidente homem, a presidente mulher. Vejam bem: o machismo, que abunda nas regras gramaticais tradicionais, no caso do particípio presente, é uma bela excepção: igualdade para todos os géneros. Pode-se dizer ‘todos’ porque, em latim, é uniforme para os três géneros – masculino, feminino e neutro. Querem ver? Homo præsidens – o homem presidente (que preside); mulier præsidens – a mulher presidente (que preside); animal præsidens – o animal presidente (que preside, em linguagem de fábula, claro, mas real em linguagem gramatical). Convém acrescentar que, na flexão latina, apenas é biforme no acusativo: præsidentem, præsidens; mas note-se que, para os dois géneros de gente, homem e mulher, continua uniforme – præsidentem; para o neutro, præsidens, porque o neutro tem sempre o acusativo igual ao nominativo. Desculpem lá esta deriva gramatical, mas achei que era conveniente para dizer que, ao menos neste ponto, parece que o processo linguístico respeita, e, quiçá…, preconiza, a igualdade entre os dois géneros que têm a ver com homem e mulher.

Para que a coisa não fique no ar, dando lugar a elucubrações sobre esta minha opinião (mais do que opinião, parece-me tese comprovada), continuemos. O particípio presente verbal é, pois, já dos tempos latinos, adjectivo uniforme como fica dito. E aí estará a razão por que, no processo evolutivo do português, não se lhe atribuiu a forma feminina diferente da masculina, nem mesmo quando o particípio (adjectivo), pela chamada derivação imprópria, se substantiva, como no caso de presidente. Se não, vejamos se em outros (ou em todos os outros), alguma vez teve sucesso a tentativa de usar o particípio no feminino forçado. Basta referir alguns exemplos. Alguma mulher estudante quer ser considerada “estudanta”? Alguma mulher amante quer ser “amanta”? Uma mulher pedinte quer ser tratada por “pedinta”? Ou uma mulher lente, por “lenta”? Uma escrevente quer ser “escreventa”? E por aí fora: experimente todos os verbos que lhe apeteça. Nenhum admite essa flexão à força…

Nenhum mesmo? Ah! Apenas me lembro agora de um que admitiu, na história da língua e da pátria, a excepção que, é bem de ver, terá sido convencionada por imposição protocolar e conveniência das dinastias (Portugal e Espanha): trata-se da palavra infanta que, desde fins do século XV, foi determinada como tratamento das filhas dos reis que não fossem herdeiras do trono. Decidiu-se, pois, que uma qualquer D. Maria, princesa não herdeira, fosse a Infanta D.Maria. “Infante” tem a ver com o particípio presente do verbo depoente latino – for, fatus sum – que significa falar; fans, fantis, na negativa, deu infans, infantis (que não fala).

“Sabo, saibo ou não tem?”

Mais uma vez, era no “Jogo da Língua” (Antena 1).

Perguntava-se a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo saber (= ter sabor). Três hipóteses: a) sabo; b) saibo; c) não tem.

O concorrente não acertou porque atirou à alínea c), pensando, se calhar, que o verbo seria defectivo.

Errado. E a senhora professora explicou então. Resposta certa seria a alínea b): eu saibo. Mas à senhora doutora não lhe ficaria nada mal estender um pouco mais a explicação. Não é defectivo, porque se pode usar em frases de cariz mais ou menos figurado. Quando, por exemplo, a mamã morde ou faz que come a orelha do filhito, este pode-lhe perguntar: “estás-me comendo a orelha, mamã. E eu saibo a quê?” Lá está: eu saibo, tu sabes, ele sabe, nós sabemos, vós sabeis, eles sabem. Isto, do verbo saber (=ter sabor). Mas há outro verbo saber, de sabedoria: eu sei, tu sabes, ele sabe, nós sabemos, vós sabeis, eles sabem, Diremos que, em português, o presente do indicativo dos dois verbos é homónimo em todas as pessoas, excepto na primeira: eu sei / eu saibo. E acho que é a única forma em que o verbo saber (= ter conhecimento) se distingue do verbo saber (=ter sabor). O que quer dizer que o verbo sapere do latim mais vulgar, no processo evolutivo, levou a palma ao verbo scire do latim clássico. E podia-se fazer aqui referência à etimologia de saibo que tem como étimo nem mais nem menos do que o correspondente latino: sapio. Têm ambos as mesmíssimas letras, só que, na evolução, deram-se fenómenos que costumam dar-se no processo evolutivo – sapio > saibo: o ‘i’ do latino saltou, em metátese, para junto do ‘a’ formando com ele ditongo (saipo); e o ‘p’ abrandou em ‘b’ (saibo). Aí está. Não custava nada e olhem que a coisa, parece-me, não deixa de ser bem curiosa. Será que a senhora doutora acha que o latim não tem nada a ver?…

“É nessa categoria que se pode arrumar os telegramas”?!

1. Texto no contexto.

“A maioria dos telegramas revelados pela WikiLeaks não exibe grande informação factual. Mas mostra bem como os diplomatas americanos vêem os países onde estão colocados e, sobretudo, que imagem transmitem destes a Washington. É nessa categoria que se pode arrumar os telegramas agora conhecidos da opinião de Thomas Stephenson sobre as Forças Armadas portuguesas.” (DN, 27/Fev/2011, Editorial, Texto 2).

2. Sintaxe à força.

O uso da partícula apassivante (ou, se preferirem, a conjugação reflexa com valor semântico de passiva)  radica no processo diacrónico-evolutivo da língua portuguesa e só muito recentemente alguns utentes com posição de ribalta (bem visíveis nos órgãos de comunicação social) insistem, por sua conta e risco – “porque sim, porque eu acho que é assim!” –, em transformar essa construção linguística de sempre, de tal forma  que a sintaxe fica sem maneira de se lhe poder dar a volta. Vejam.

3. Análise sintáctica.

“É nessa categoria que se pode arrumar os telegramas agora conhecidos […]

Deixando para trás o complemento de lugar (ou, se preferirem, de classificação…), obtido com por meio de construção enfática (“É nessa categoria que”), analisemos a restante oração principal nos seus elementos do sintagma verbal: “se pode arrumar os telegramas agora conhecidos”.

O que é que se pode arrumar? Os telegramas agora conhecidos. “Os telegramas” é sujeito ou complemento directo? Eis a questão. Na construção com partícula apassivante, “os telegramas” são o sujeito sintáctico. E assim sendo, o verbo terá de concordar com o sujeito. Daí: “se podem arrumar os telegramas agora conhecidos”.

Se não for assim – mas é assim, como se pode deduzir do processo evolutivo/diacrónico da língua, confirmado por unanimidade pelas gramáticas normativas  em uso nas escolas – se não for assim, e considerarmos “os telegramas” complemento directo, qual é o sujeito de “pode arrumar”? Será o “se”? Uma aberração contraditória do secular uso da apassivante: ao “se”, nunca, falantes gramáticos, atribuíram a função de sujeito.

4. Concluindo.

São os falantes que fazem a língua. São os gramáticos normativos que registam e ensinam a norma. Pois então:

“É nessa categoria que se podem arrumar os telegramas agora conhecidos” = É nessa categoria que podem ser arrumados os telegramas agora conhecidos.

5. Outro mau exemplo.

“Veja-se os casos dos idosos que morrem abandonados”. (Mesmo DN, última pág. Ao fundo).

Deveria ser: “Vejam-se os casos dos idosos…” (= sejam vistos os casos dos idosos…).

6. Caros deparantes de acaso ou adrede visitantes, não se deixem levar por quem defende que, em casos destes, talvez em nome da inovação, ao “se” se pode atribuir a função de sujeito, como se fosse pronome indefinido (que não é!).

“Acresce-se”?!

Acresce-se [sic] ainda o facto de não haver nos países árabes uma cultura de liberdade política e de princípios de soberania popular, o que torna difícil a compreensão e a aplicação deste regime” (Cf. DN 25/fev./ 2011, p. 63 – Que democracia para o Médio Oriente?)
“Acrescer, v. t. (lat. acrescere). Juntar, aumentar. V. i. Sobrevir, ajuntar-se: aos meus cuidados antigos acrescem novas preocupações” (Dicionários).

N.B.: O verbo acrescer não se usa em conjugação reflexa.

Voltando ao texto, como devia ser?

Acresce ainda o facto  de não haver”, etc.

A ajuda que nós “imos” receber…

Estávamos no rescaldo da bela sesta, íamos ouvir o noticiário das quinze nesse dia 24 de Agosto. Tratava-se da ajuda que o governo ia dar aos pastores e lavradores do Soajo, devastado pelo fogo. De repente, a minha mulher chama. “Ouve, ouve!” Era o porta-voz dos lavradores: “A ajuda que ‘imos’ receber’ é boa porque é imediata, mas não chega!’”. Vejam vocês! Tinha eu acabado de ler o romance histórico A Voz dos Deuses, de João Aguiar, que tem como protagonistas Viriato e um ‘brácaro-lusitano’, neto de um rei brácaro e letrado o bastante para ser intérprete entre Lusitanos e Romanos. E ouço um português a falar “‘imos’ receber”, aquela primeira pessoa do plural do presente do indicativo, que lhes ficou da lídima forma latina – imus – tal como os invasores a usavam.
E, é claro, lembrei-me de quando eu ensinava na escola os verbos irregulares. Este tem uma particularidade:  o verbo ir, tal como qualquer boa gramática nos informa, conjuga-se com recurso a três temas verbais latinos: ire, vadere e esse. No presente do indicativo, por exemplo – vou, vais, vai, vamos, ides, vão – não é difícil verificar que apenas a segunda pessoa do plural – vós ides – provém de ire; as restantes cinco provêm de vadere. E se formos ao perfeito, todas as formas de todos os tempos do tema do perfeito provêm do verbo esse, do respectivo perfeito. Fui, foste, foi, fomos, fostes, foram (para mais, consultar gramáticas).

Como é que isto pôde acontecer? É uma questão do processo evolutivo das línguas que precisaria de um estudo profundíssimo e exaustivo, que, aqui e agora, escrevinhador e leitores, todos estamos dispensados de o fazer… Mas precisar de passar os setenta para ouvir um dos falantes do nosso querido português usar ‘imos’ na primeira pessoa do plural do presente do indicativo do verbo ir, forma que nos vem do latim clássico tal qual era dita por Cícero (o ‘o’ é uma questão ortográfica convencional), foi para mim um espanto, post meridianum somnum, que é como quem diz depois da soneca do meio-dia (depois da sesta)!

Por falar no verbo ir, lembro-me bem de uma aula em que tentava saber se os alunos o conjugavam correctamente. Pedi a um que dissesse o presente do conjuntivo. E ele começou:

– Que eu vá, que tu vás, que ele vá, que nós vamos, que vós… não sei…
E eu disse:
– Que vós vades, que eles vão.
– Que vós vades, professor?! Isso é português?!

É claro que é. Está sendo pouco usado; se calhar caindo em desuso, mas é o que as gramáticas registam para quem o quiser usar; e eu uso-o quando acho preciso. E porque não? Vamos deixá-lo morrer para que o verbo ir, além de tão embrulhado etimologicamente, fique defectivo?… E do conjuntivo forma-se o imperativo negativo: “filhos, não vades pelo sol, ide pela sombra!” E agora sei que, em alguma parte do país, haverá quem responda: “Sim, pai, nós imos pela sombra”.

Erro que alastra (mas alastra mesmo!)

“No entanto, Domingues Lopes admite que a acusação em questão – de um alegado atentado à liberdade de imprensa – ‘é uma das matérias que entra na jurisdição do PEDH’” (DN 27/FEV/10, “Estado pode ser julgado em tribunal europeu”, p. 5., realçado nosso)
Mas alastra mesmo! Vejam bem. Estou a ver que, por este andar, em breve acabarei por não conseguir ler peça jornalística em que, pelo menos uma vez, não encontre o dito cujo. Numa oração relativa cujo antecedente do “que” seja plural. Olhem para o realçado da transcrição.

“É uma das matérias que entra”? Se o “que” é sujeito (como parece que não pode ser outra coisa) e o antecedente é “matérias”, então o predicado (o verbo ) é “entram”: “É uma das matérias que entram…” É ou não é?

Vejam lá então – vos peço – essa sintaxe do relativo ‘que’!

“Uma das culturas […] que construiu”?

Os colonos brancos fugiram para Nova Orleães e introduziram uma das culturas, a do algodão, que construiu a sociedade americana” (DN 20JAN/2010, última página, “Um ponto é tudo” de Ferreira Fernandes)

Caro Ferreira Fernandes, pelo prazer e proveito que sempre tiro da sua leitura, atrevo-me a fazer-lhe uma cobrança, hoje. Já não é a primeira. As anteriores foram a nível de ideias, contestando ou confirmando (vide postagens “O Nazismo de hoje” e “Pior tragédia da ONU”). Desta feita, é uma contestação minha de sintaxe sua; nível gramatical, pois, se me permite. Está realçada na citação acima: “… uma das culturas, a do algodão, que construiu a sociedade americana”. Vamos só à oração relativa:

(uma das culturas) que construiu a sociedade americana

sujeito – ‘que’ relativo a ‘culturas’ (antecedente do ‘que’);

predicado – construiu – que (as quais culturas) construiu? Não:  que (as quais culturas) construíram;

complemento directo – ‘a sociedade americana’.

Já agora, podemos classificar também ‘a do algodão’ que é nem mais nem menos do que um aposto ao pronome ‘uma’ no início da frase, que por sua vez é complemento directo de ‘introduziram’.

E assim se demonstra que um grande jornalista, da minha admiração quanto à linguagem jornalística e ao domínio da língua, também se pode deixar contaminar pelas gralhas que por aí grasnam…

Mas não fiquemos por aqui. Podíamos dar uma volta à sintaxe de modo que o verbo pudesse ficar no singular. Assim: “… e introduziram uma cultura, a do algodão, que construiu (que ajudou a construir) a sociedade americana”.

Com um abraço deste seu leitor.