Quão

De uma mensagem de pessoa amiga (não digo se homem ou mulher para tornar mais fácil o anonimato) tirei o advérbio “quão”, usado por duas vezes na dita mensagem:

1. “… mostrar o quão bom lugar é [esta terra]…”
2. “De resto, espero que esteja tudo bem [….. ]. Espero também que vá dando novidades, pois sinceramente fico a sentir-me mal quando recebo estes e-mails e percebo à quão tempo [sic] não falava consigo.”

Trata-se de um advérbio de quantidade que tem no latim o étimo correspondente – quam – e a mesma ideia significativa de quantidade, quase sempre comparativa. Mas vamos às gramáticas e aos dicionários buscar a classificação e o uso correcto em contexto discursivo:

Quão, adv. (lat. quam). Quanto, como: quão desgraçado eu sou! Tão feia quão bondosa. (Dicionário Prático Ilustrado, Lello).

“Outros advérbios de quantidade: pouco, menos, demasiado, quão, tanto, tão, assaz, que…” (Compêndio de Gramática Portuguesa. A Gomes Ferreira, J. Nunes de Figueiredo, Porto Editora (edição mais recente).

Comentários aos dois usos referidos:

1. Não é muito usado assim, mas preferindo-se este uso, ficaria mais confome a norma, suprimindo o artigo inicial, ficando assim a frase: quão bom lugar é esta terra.

2. “à quão tempo…” é incorrecto: ‘à’ está errado, deve ser ‘há’ do verbo haver; e, em vez de ‘quão’ usar ‘quanto’: Há quanto tempo te não vejo!

E daqui podemos passar ao nome que os eruditos (gregos, claro) deram a este tipo de erro ou vício de linguagem: solecismo. Solecismo porquê? Eis (trancreve-se do mesmo Dicionário Prático Ilustrado da Lello):

Solecismo. Substativo masculino (gr. Soloikismos, lat. soloecismu. Erro contra as regras da sintaxe: houveram homens por houve homens [Este desgraçado verbo haver que anda por aí assim tão desgarrado!…]. Por extensão, qualquer erro ou falta. Falava-se muito mal o grego, em Soles, cidade da Silícia, fundada pelos Atenienses. Do nome dos habitantes dessa cidade provém a palavra solecismo.

Dois grupos lexicais parónimos e não homónimos

Ante-scriptum: Na loja onde comprei os óculos, sentado diante da secretária da senhora atendedora, olhei à minha volta, para o décor da sala, e vi, em vários sítios, a palavra óptica (assim escrita com o “p” antes do “t”). Noutros sítios estava ótica (sem, ´p´, como, por exemplo, no saco em que me entregaram os meus óculos). À entrada do supermercado em que está integrada a loja, podemos ver no cartaz da dita, em letras garrafais de publicidade, a palavra ótica sem o “p”. Foi por isso que me decidi a compor este ’post’.

1.
ÓPTICA
(nome substantivo): parte da física que se ocupa da luz e dos fenómenos da visão (ou de artigos que têm a ver com a visão, como, p. e., óculos… (Etimologia: do substantivo grego optiké).
ÓPTICO/ÓPTICA (adjectivo): referente à óptica ou à vista; visual; o que fabrica instrumentos de óptica; oculista […].

Atenção à ortografia e mesmo à prosódia: por mais que “uma coisa obscena chamada Acordo Ortográfico” (na feliz expressão de Vasco Graça Moura) insista na asneira de os considerar homónimos, nunca este grupo (da óptica) poderá deixar de se escrever com o ‘p’ que precede o ‘t’, Por duas razões, a etimológica e a prosódica: é que aquela consoante “p” não será assim tão muda (quando muito, poderia dizer-se “semimuda”, porque os falantes sabedores pronunciam-na: “óptica”, pois.

2.
ÓTICO/ÓTICA (adjectivo): do ouvido; relativo ao ouvido; diz-se do medicamento contra as dores dos ouvidos. [Etimologia: do grego ótikos, “auricular” pelo lat. oticu; da mesma família do “oto” de otorrinolaringologia; elemento de formação de palavras que exprime a ideia de “ouvido”: do grego ous- otós – ouvido ].

Nota final: Posto isto, não vejo onde possa haver confusão entre as palavras destes dois grupos lexicais, nem que razão assistirá a esses ignorantes que mandam escrever as palavras do grupo 1 sem “p” ou do grupo 2. com “p”!…

Um pedaço de bolo óptimo

Era , na Rádio, um dia destes, o Jogo da Língua. De uma frase que poderia ser esta do título, fazia-se a seguinte pergunta:

“a palavra ‘óptimo’ corresponde ao adjectivo ‘bom’ no grau superlativo absoluto
a) sintético
b) analítico
Qual das duas alíneas está correcta?”

O concorrente lá foi pensando, lá foi tentando dizer e, com uma ajudinha, já não me lembro se acertou ou se errou. Mas tal também não interessa agora para o que me traz aqui. O que aqui me interessa tem a ver com a explicação da senhora doutora supervisora. É que, depois de dizer que o comparativo de superioridade do adjectivo ‘bom’ é ‘melhor’, disse, seguidamente, que o comparativo de inferioridade do mesmo adjectivo é ‘pior’ e foi precisamente por este busílis que me decidi a comentar o caso. A comentar afirmando que, aqui, está errado: pois toda a gente devia saber que ‘pior’ não pertence à flexão do adjectivo ‘bom’, mas sim do seu antónimo ‘mau’. Resumindo, ‘pior’ é o grau comparativo sintético de superioridade do adjectivo ‘mau’ que também tem uma forma analítica: ‘mais mau’, o que não acontece com o adjectivo ‘bom’ que apenas tem uma forna analítica: ‘menos bom’. A confusão aqui intrometida vem, certamente, do facto de os dois adjectivos – bom e mau – serem antónimos em todas as formas flexivas: pior é antónimo de melhor; péssimo é antónimo de óptimo. As formas flexivas do adjectivo ‘bom’ só poderão ter, com as do adjectivo ‘mau’ uma relação semântica de antonímia, e não uma relação morfológica de flexão.

‘Pior’ é comparativo de superioridade de ‘mau’; o de inferioridade é o analítico ‘menos mau’. Do adjectivo ‘bom’: comparativo de superioridade é o sintético ‘melhor’ e o de inferioridade o analítico ‘menos bom’.

Acham confuso? Pois, o português, às vezes, além de confuso, pode ser muito traiçoeiro…

O grama e a celeuma

(A) celeuma s. f. (Do grego keleusma pelo latino celeusma): vozearia de pessoas que trabalham; algazarra; barulho; debate aceso (dos dicionários). Em grego, substantivo do género neutro: keleusma, keleusmatos. Em latim: celeusma, celeusmatis, género neutro; ou celeusma, celeusmae, género feminino.

É, pois, curioso verificar que, sendo, no grego, do género neutro, como geralmente são os substantivos terminados em ‘a’, esta palavra, ao passar pelo latim, manteve, nesta língua, o género neutro – celeusma, celeusmatis. Os falantes latinos arranjaram a versão da mesma palavra, género feminino, tema em ‘a’: celeusma, celeusmae (assim os regista o Torrinha). Em português, os falantes preferiram o género neutro que já vinha do grego. Isto, de uma maneira geral, para um grande número de palavras terminadas em ‘a’ que, vindas do grego, em português adoptaram, geralmente, o género masculino. São umas boas dezenas de palavras, talvez centenas (não me dei ao trabalho de as contar, para o que precisaria de muito tempo); são, geralmente, de carácter erudito na área científica, como: o grama (seus múltiplos e submúltiplos: o hectograma, o quilograma, o decigrama, o miligrama, etc.); o problema, o dilema, o programa, o panorama, o teorema, o fonema, o grafema, o genoma, o sintoma, o esquema, o enfisema, o tema, o lema, o eczema, o edema, o poema, o emblema, o estratagema, o cinema, etc., etc., etc.

Há, no entanto, nesse grupo de palavras terminadas em ‘a’ vindas do grego, de género neutro, algumas que, por razões de carácter linguístico, nem se sabe bem porquê, em vez de passarem do neutro grego para o masculino, como geralmente aconteceu, inclinaram-se para o género feminino, como, por exemplo: a fleuma, a reuma, e – cá está – a celeuma. Seria caso para perguntar se, também aqui no processo linguístico, nem todos os neutros conseguiram escapar à sedução do feminino?… E então, o grama do título, também é masculino? Pois, meus caros, era mesmo aí que eu queria chegar. A introdução pode parecer grandinha, mas eu achei que assim deveria ser, para se aprender melhor a coisa. Que coisa? Que a palavra “grama”, unidade de massa (ou de peso) na língua portuguesa é do género masculino. Vejam.

(O) grama s.m. FÍSICA, unidade de massa do sistema CGS (centímetro, grama, segundo). Do grego gramma.

Esta, como a generalidade das suas manas (as tais vindas do grego neutro) conseguiu também fugir à sedução feminina. (Não confundir com ‘a grama’ erva). Trata-se, pois, de um grama, dois gramas, vinte e um gramas, duzentos gramas, quinhentos gramas, mil e seiscentos gramas… Mil e seiscentos gramas, quantos quilogramas são? Até uma criança da escola sabe: é um quilo (um quilograma) e seiscentos gramas. Seiscentos, estão vocês a ouvir? Não, seiscentas gramas não, porque este grama é masculino! Não confundir, pois, com ‘a grama’ erva!

(A) grama s.f.(do latino gramina) BOTÂNICA, erva rasteira, rizomatosa, prejudicial às culturas; graminheira.

Todas as vezes que ouço alguém à minha volta dizer “quantas gramas são? quinhentas gramas?”, apetece-me dizer-lhe, como dizia aos alunos na escola: “Quinhentas gramas, não, meninos! As gramas são ervas!”

Ouviram bem? Em peso, são quinhentos gramas! E não se pense que é assim tão raro ouvir essas incorrecções, sobretudo quando se anda próximo de profissionais, aliás, bons profissionais que, na sua profissão, lidam a toda a hora com os gramas, com os miligramas, e até com os microgramas!… Não esqueçam então: as gramas são ervas! Os gramas são peso!

Parónimos ou quase: irradiar / erradicar

“Comité Olímpico Português pondera erradicação de Carolina Borges” (in JN, 09.08.2012: http://www.jn.pt/PaginaInicial/Desporto/Interior.aspx?content_id=2712358)

Sem me querer meter na discussão sobre o que pretende o Comité Olímpico Português, no sentido de penalizar a atleta Carolina, quero apenas pegar no uso – que me parece incorrecto – da palavra ‘erradicar/erradicação’.

É claro que, nos dois verbos do título, além da diferença etimológica, há também uma diferença semântica.

Irradiar – Trata-se do verbo  radiar, que deriva do latino radiare (com o radical de radiu- = raio). O prefixo ‘in’ (com o ‘n’ assimilado pelo ‘r’ inicial da primitiva) reforça o sentido de movimento: afastar de si (de um centro ou de uma coisa ou de uma ideia), espalhar, difundir, mandar para fora, tendo em vista o âmbito radial do centro de qualquer superfície. Há aqui um certo sentido horizontal, em relação a uma coisa que se espalha a partir de um centro.

Erradicar – trata-se do verbo radicar que deriva do latino radicare (com o radical de radice– = raiz), com o prefixo ‘e’ que significa ‘para fora’: puxar para fora pela raiz, arrancar qualquer coisa pela raiz. Há um certo sentido vertical, de baixo para cima.

Ter em conta, nos dois exemplos, o sentido próprio e o sentido figurado.
É claro que os senhores do Comité terão querido dizer irradiar

i que má surpresa!

Tinha deixado de ler, diariamente, o DN, pela simples razão de nele se ter ‘adotado’ (como eles escrevem) “uma coisa obscena chamada Acordo Ortográfico” (VGM), e, em seu lugar, comecei a ler o i, em português, claro (vide postagem ‘i que boa surpresa!’).

E eis que hoje, 26/Julho/12, ao ler, agradavelmente, o i, em português, deparo com a Queda dum Anjo, na página 15, publicitando a desagradável notícia da ‘coleção’ [sic] que implica a falta de ‘perfeccionismo’ do jornal! Onde é que está a coerência respeitadora dos leitores que desejam continuar a ler, em português, tudo o que seja escrito em português? E, já agora, porquê a brincadeira infantil de Clássicos com K? A queda do perfeccionismo?! E nem sequer sabem – os responsáveis – que perfeccionismo, mesmo segundo o tal Acordo, se deve escrever com dois ‘cc’, pela simples razão de que ambos se pronunciam na dicção. Não há nenhum ‘c’ mudo nestas duas palavras. Aonde estão dispostos a levar esta barafunda, esta bagunça brincalhona, esta pouca vergonha?!

Duas postagens, uma proposta e um reparo sindical

1. LÍNGUA: O ESCÁRNIO.
É um espectáculo de escárnio e maldizer. De escárnio, pois! Então, não? Pega-se num jornal (DN, por exemplo), seja ou não seja de referência (não se sabe bem de que referência… mas vamos lá: de referência, então). A gente vê que a maior parte dos textos seguem essa baralhada ortográfica a que chamam ‘acordo’ (eu chamo-lhe, simplesmente, ‘nem-brasileiro’). Mas, quando se chega às crónicas, ou seja, aos chamados colunistas, aí, deparamos com a língua portuguesa, escrita por bons cultores da língua, os melhores, se tivermos em conta todos os escritos do jornal. E, justamente, esses textos, numa percentagem para aí de 90%, trazem, ao fim, uma notinha onde se lê, por estas ou outras palavras que querem dizer o mesmo: “Por decisão pessoal do autor, este texto não segue a ortografia do [assim chamado] Acordo Ortográfico” (“assim chamado” é meu].

Quanto aos textos ortografados em meio-brasileiro, a gente sabe: os donos do jornal mandaram e os funcionários (jornalistas ou fazendo de conta…), cumprem a ordem, por imposição ou autocensura, claro.

E a gente pensa e diz: é isto um jornal de língua portuguesa?! Não, não é um jornal em língua portuguesa: é um escárnio à língua portuguesa! Escárnio, porque, precisamente, dentre os escreventes de todas aquelas páginas, os que, em nosso entender, melhor dominam a língua escrita, quiçá os que a cultivam com mais mestria – os colunistas – “tomam a decisão de não obedecer ao ‘acordo’, ou melhor, ao ‘desacordo’. Escrevem a língua como entendem que ela deve ser escrita hoje.

E, depois de folhearmos todo o jornal, só nos apetece dizer: então, é isto um jornal português?! Não! Isto é um escárnio à língua portuguesa!

2. LÍNGUA: A RECONQUISTA.
Depois da nomeação de Vasco Graça Moura (VGM) para o Centro Cultural de Belém, lembrei-me de compor uma postagem para o meu blogue, com este título: “E agora, Vasco?!”

Não o fiz. E o processo tem-se desenvolvido com uma rapidez tal que decidi para o texto este título que aí está: Língua: a reconquista..

Primeiro foi VGM em Belém. Agora é já a Universidade Clássica de Lisboa. (Que dois grandes bastiões!) E todas as outras instituições, do mesmo nível e da mesma responsabilidade, estão à espera de quê? Que Afonso Henriques volte com a sua espada, para, castelo a castelo, operar, com a sua força, a Reconquista da Língua? Que bela oportunidade perdeu a cidade de Henriques – Guimarães – Capital Europeia da Cultura! E as outras? A começar pelas escolas. Não tenham medo, que as editoras vão atrás. Ai não, não vão! Cidadãos, percam todos o medo, tenham coragem! Ou então, como diria o outro: não sejam piegas!

Vamos repor a nossa Língua!

3. A PROPOSTA.
Insistindo na ideia do ponto 1, é um espectáculo deprimente o que nos estão oferecendo a maior parte dos jornais deste País, do país de língua portuguesa: é que, na maior parte deles, não se chega bem a saber qual a língua: se o português, se o brasileiro, se uma mistela de português e brasileiro. (Sem qualquer obrigação: mais papistas que o papa?…). Também se refere lá que os que pressupostamente melhor dominam o português, ou seja, os escribas colunistas (aí pelos 90%), declaram em nota, no final do respectivo texto, que não “adotam” o AO, mas adoptam sim a “ortografia antiga”, querendo com isto dizer a ortografia da reforma de 45. Et pour cause! Eles é que têm razão, porque, à excepção dos seus textos, o resto é uma salgalhada que ninguém domina (nem pode dominar!) e que, também “adotada” em locais oficiais e nas escolas, só serve para atrasar a aprendizagem do ler e do escrever o português!

Sendo assim, aqui se propõe ao GRUPO LENA que dê ordem para que, em em todos os órgãos da Imprensa do seu domínio, se adopte obrigatoriamente a ortografia de 45, seguindo o exemplo do Centro Cultural de Belém, presidido por Vasco Graça Moura, e parece que também da Faculdade de Letras de Universidade Clássica de Lisboa. Estou muito triste com a revista do meu sindicato Escola Informação – SPGL. António Avelãs é director na fotografia, mas o texto é “escrito conforme o novo Acordo Ortográfico”. O Correio de Pombal, cujo prestigiado director, conhecido grande cronista e mais um bom cultor das letras, não tem problema em ‘avisar’, nos bons textos de sua autoria, que “não vai à bola com o Acordo Ortográfico”, poderia muito bem ser, aqui na Alta Estremadura, um pequeno mas valioso bastião da Reconquista da Língua. E, já agora, o Rodilha. Como estamos de ortografia? Cada uma escreve como entende? E porque não enfileirarmos todos na Reconquista?…

4. ESTE TEXTO, nos seus primeiros três pontos, foi publicado em O Correio de Pombal de 01.03.12, p. 10, e será em o Rodilha. As postagens estão no blogue. Ao receber as revistas do meu sindicato – SPGL – e da federação em que se integra – FENPROF – poderão calcular os meus queridos e admirados colegas dirigentes dessas instituições a tristeza (para não dizer coisas mais fortes) que me invade quando as leio e verifico quão é prejudicada a sua força de luta que têm demonstrado e em que eu me reconheço pela adopção (adoção… ou será adução?…) “dessa coisa obscena chamada acordo ortográfico” (Cf. Vasco Graça Moura). O bons dirigentes Nogueira e Avelãs, e companheiros, se calhar mais papistas do que o papa (quem os obrigava?…), resolveram estragar as revistas lançando nelas a “criminosa” (de novo VGM) estragação da Língua que, “criminosamente” (idem) está em curso. Só por isso, vejam vocês, apetece-me “desarriscar-me”.

Aqui, da retaguarda dos fragilizados, um forte abraço (pela luta que não pela escrita!), do

António Marques (SPGL, nº037094)

“Jogo da Língua”: mais uma ignorância

Foi mesmo há poucochinho, à hora da sesta deste 8 de Fevereiro de 2012. Três alíneas para o superlativo absoluto sintético do adjectivo “amargo”: a) amaríssimo; b) amarguíssimo; c) amarguérrimo.

O concorrente aponta para a alínea b). Segundo a senhora doutora, resposta errada. Certa seria “amaríssimo”, porque vem do latim etc. e tal. Aceitou-se a solução (que faz lei) E pronto! O homem perdeu um livro que tinha ganho! E, além do resto (que é a ignorância), perdeu-se uma belíssima oportunidade de lembrar, aos concorrentes e aos ouvintes da Antena 1, que a norma gramatical do português admite que certos adjectivos, como é o caso de ‘amargo’, têm duplo superlativo absoluto sintético: um de cariz erudito, de origem latina, e outro de origem popular (que nem por isso deixa de ser legitimamente abrangido pela norma.)

Para evitar a gaffe , bastaria, na preparação do jogo, consultar uma boa gramática em uso nas escolas: “amargo (ou amarguíssimo)” (Gramática do Português Moderno, José Manuel Castro Pinto / al. Remodelada, p. 134, Plátano). Ou então um bem cotado dicionário: entradas “amargo”, “amaro”, “amaríssimo” [esta] – “extremamente amargo; amarguíssimo, sup abs. sint. de amargo” (DICIONÁRIO HOUAISS da Língua Portuguesa).

Se eu fosse ao concorrente exigia a tal “Fazenda” que lhe ficaram a dever!

Considerações sobre haplologia

Haplologia – “(Gr. Haplóos+logos – palavra simplificada, reduzida). Contracção ou redução dos elementos similares de um vocábulo. Diz-se também da supressão de um vocábulo repetido. Contracção ou redução de duas sílabas semelhantes de um vocábulo, para facilidade da prosódia (p. ex.: bondoso por bondadoso)” (Ver dicionários).

É claro que se trata de um fenómeno linguístico, mais comum do que se possa imaginar. E, antes de prosseguir, quero dizer que este texto me foi sugerido pela leitura da crónica “Um plano alvar” de Fernanda Câncio (in Diário de Notícias, 11/11/11, página 9):

“Não me parece que o discurso da competitividade, tão caro ao ministro Álvaro Santos Pereira (que aliás insiste em articular ‘competividade’ como articula ‘precaridade’ e ‘empreendorismo’), só serve para justificar a entrega dos transportes públicos aos privados – porque, dogma intocável para este Governo, a gestão privada é sempre boa e a pública sempre má.”

Se eu peguei neste parágrafo foi para mostrar que as “articulações” do ministro, ironizadas pela jornalista, não são as formas correctas que hoje se usam na linguagem corrente, mas podem muito bem vir a sê-lo, pelo menos algumas, pois elas têm a ver com o fenómeno da haplologia que acontece primeiro num uso restrito e se vai depois alargando até um belo dia se tornar a forma de uso normal generalizado. Querem ver alguns casos? Como se deve usar (dizer/escrever): caridadoso ou caridoso? bondadoso ou bondoso? piedadoso ou piedoso? E as duas seguintes, registadas, ambas, em dicionários recentes: computadorizar ou computorizar? consultadoria ou consultoria? (Ver Dic. Porto Editora, 2003). Eu, por mim, vou pela consultoria e computorizar. Das “articulações” do ministro, eu usaria, já, pelo menos, competividade e empreendorismo; precaridade, não, porque a norma geral de substantivo em –ade formado de adjectivo em –io é ele terminar em –iedade: contrariedade, piedade, variedade, precariedade.

E, já agora, cuidoso ou cuidadoso? Vejam o que diz o dicionário:

“cuidoso, adj. o mesmo que cuidadoso, hapl.” [abrev. de haplologia, claro] (Dic. Porto Editora 2003).

Pode-se dizer que esta forma haplológica, que foi usada no passado por grandes poetas e escritores (quiçá o próprio Camões), hoje em dia é praticamente um arcaísmo. Contrariando a tendência, calhou-lhe a sorte arcaizante…

Mas não queria terminar sem um último comentário. Na crónica referida, ou alhures, usa-se a linguagem de alguém, que se considera incorrecta, como argumento. Nisso, eu sou contra. E não é porque tenha alguma confiança no que diz o ministro, não: é porque a argumentação contra o que alguém diz perde a força argumentativa se nos virarmos para a linguagem mal dita ou supostamente incorrecta, por muito alvar que possa ser… Não deixará de ser uma espécie de argumento ad hominem, ou, se preferirem, ad sermonem

“Presidenta”: extravagância caprichosa, gratuita e inútil

Pretender que presidenta seja a forma feminina de presidente não é mais do que… uma pretensão, extravagante, caprichosa, gratuita e inútil (e talvez antifeminista…). Ao mesmo tempo, revela um certo desconhecimento do processo evolutivo-etimológico das línguas em geral, e, em particular, da nossa língua – a língua portuguesa. Feminino forçado. E nem me venham dizer que a notoriedade de quem lançou, por aqui, a extravagante ideia, ou a sua relação com o falecido Nobel, só por isso, para tanto lhe dá autoridade. Nem tão-pouco, no segundo caso mais conhecido, o facto de ter sido a primeira mulher eleita para o cargo de presidente do Brasil, nem tão pouco isso, lhe dá a faculdade de se arrogar o direito de poder impor tal extravagância linguística aos falantes que lhe deram o voto para a presidência; considerando, essas agora ilustres senhoras, que se trata de atitude legítima de militância feminista. De maneira nenhuma. Já diremos porquê. Mas, antes de prosseguir, que fique bem claro, aqui, o meu grande respeito por essas duas figuras femininas, grandes mulheres progressistas, cada uma pelas suas razões, cada uma na sua circunstância. (Se feministas correctas, isso é outra coisa…).

“Presidenta” porque é mulher? Não! Por motivo nenhum. Por motivo gramatical, muito menos! E é simples. Presidente é o particípio presente do verbo presidir. Particípio, que também em português é uniforme, o que em linguagem gramatical quer dizer que tem uma única forma para os dois géneros: o presidente homem, a presidente mulher. Vejam bem: o machismo, que abunda nas regras gramaticais tradicionais, no caso do particípio presente, é uma bela excepção: igualdade para todos os géneros. Pode-se dizer ‘todos’ porque, em latim, é uniforme para os três géneros – masculino, feminino e neutro. Querem ver? Homo præsidens – o homem presidente (que preside); mulier præsidens – a mulher presidente (que preside); animal præsidens – o animal presidente (que preside, em linguagem de fábula, claro, mas real em linguagem gramatical). Convém acrescentar que, na flexão latina, apenas é biforme no acusativo: præsidentem, præsidens; mas note-se que, para os dois géneros de gente, homem e mulher, continua uniforme – præsidentem; para o neutro, præsidens, porque o neutro tem sempre o acusativo igual ao nominativo. Desculpem lá esta deriva gramatical, mas achei que era conveniente para dizer que, ao menos neste ponto, parece que o processo linguístico respeita, e, quiçá…, preconiza, a igualdade entre os dois géneros que têm a ver com homem e mulher.

Para que a coisa não fique no ar, dando lugar a elucubrações sobre esta minha opinião (mais do que opinião, parece-me tese comprovada), continuemos. O particípio presente verbal é, pois, já dos tempos latinos, adjectivo uniforme como fica dito. E aí estará a razão por que, no processo evolutivo do português, não se lhe atribuiu a forma feminina diferente da masculina, nem mesmo quando o particípio (adjectivo), pela chamada derivação imprópria, se substantiva, como no caso de presidente. Se não, vejamos se em outros (ou em todos os outros), alguma vez teve sucesso a tentativa de usar o particípio no feminino forçado. Basta referir alguns exemplos. Alguma mulher estudante quer ser considerada “estudanta”? Alguma mulher amante quer ser “amanta”? Uma mulher pedinte quer ser tratada por “pedinta”? Ou uma mulher lente, por “lenta”? Uma escrevente quer ser “escreventa”? E por aí fora: experimente todos os verbos que lhe apeteça. Nenhum admite essa flexão à força…

Nenhum mesmo? Ah! Apenas me lembro agora de um que admitiu, na história da língua e da pátria, a excepção que, é bem de ver, terá sido convencionada por imposição protocolar e conveniência das dinastias (Portugal e Espanha): trata-se da palavra infanta que, desde fins do século XV, foi determinada como tratamento das filhas dos reis que não fossem herdeiras do trono. Decidiu-se, pois, que uma qualquer D. Maria, princesa não herdeira, fosse a Infanta D.Maria. “Infante” tem a ver com o particípio presente do verbo depoente latino – for, fatus sum – que significa falar; fans, fantis, na negativa, deu infans, infantis (que não fala).