Trata-se de 4 crónicas de Vasco Graça Moura (VGM), escritor e poeta, amante, admirado cultor e grande defensor da Língua (a qual eu quero também amar, cultivar e defender), publicadas no Diário de Notícias, na sua coluna das quartas-feiras, página 54. A primeira, apenas citada, mas vale bem só pela citação. As outras três, transcritas na íntegra.
1. “O reino da insensatez”
Aqui fica a expressão mais forte com que o autor caracteriza o dito acordo: “…essa coisa obscena chamada Acordo Ortográfico” (VGM, in DN, 29/06/2011, p. 54) “
2. “O Acordo, outra vez”
“As questões de fundo relativas à aplicação do Acordo Ortográfico continuam por resolver. Não entrou em vigor, mas há sectores, tanto ofícíaís como privados, em que vigora sem rodeios especíaís o princípio do faz-de-conta. Faz-se de conta que o Acordo já se aplica de pleno e estropia-se alegremente a nossa língua. Jornais e edttoras continuam a fazê–lo da maneira mais bárbara. Há já alguns livros importantes que saem cheios dos correspondentes aleijões. E eles só não vieam ainda afectar uma séríe de clássicos da lingua pela razão singela de que cada vez menos se cura de editá-los e pô-los ao alcance de toda a gente.
Ninguém parece ter sequer acordado para a necessidade de uma revisão. As duas grafias coexistem, porque, felizmente, um quotidiano importante e urna grande parte dos colaboradores da imprensa lusítana se mantêm fiéis à grafia anterior e esta é, por enquanto, a única que, legalmente, pode e deve ser aplicada. Toda a gente sabe que é assim e não vale a pena repeti-lo.
É possível que o lobby das editoras, depois de se ter precipitado na adopção do Acordo em livros escolares, manuais, dicionários e agora noutras publicações , procure impor essa coisa sem nome em todos os sectores da vida nacional, em especial no escolar. Também é possível que o poder não saiba lá muito bem o que fazer seguindo e alimentando, neste aspecto, a desorientação nas escolas.
Os partidos políticos com assento parlamentar têm vindo a pactuar, sem excepção, com esse estado de coisas. Ninguém lucra absolutamente nada com ele..[Realçado no original] Mas tudo isso redundaria apenas num simples exercício de humor de gosto discutível, se não se traduzisse numa violência quotidiana contra a língua. E o certo é que, se as coisas continuarem assim, dentro de uma geração ninguém conseguirá pronunciar correctamente a língua portuguesa tal como ela é falada deste lado do Atlântico.
Por outro lado, o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma questão política assaz bizarra.[Realçado no original] E a questão política actualmente resume-se a isto: estão a ser aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A correcta, em países como Angola e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a pateta (em Portugal e não se sabe em que outras paragens). Os representantes dos Estados-membros na CPLP, esses devem dar pulinhos de corça alvoroçada e do mais puro regozijo com tão portentoso contributo que a organização deu para unificar a grafia do português.
Enquanto se anda nestes preparos, toda a gente se esqueceu do famigerado vocabulário ortográfico comum. Onde pára o dito? Dele, ninguém sabe dizer nada, como da formosa Mariquinhas… Até agora, o vocabulário peca pela inexistência pura e simples e ninguém se preocupou com a superação de tão momentosa dificuldade. Ora não parece que actualmente, com as restrições que afectam também tantas áreas da investigação e da diplomacia, haja qualquer possibilidade de ele ser concretizado.
Entre as consequências relevantes dessa inexistência conta-se a impossibilidade de aplicar o Acirdo de cuja entrada em vigor o vocabulário comum é condição prévia, por muito que isso pese ao Prof. Evanildo Bechara, que lê a exigência correspondente como se ela unicamente se reportasse ao vocabulário técnico e científico. É de lamentar que, na pessoa do ilustre académico, a interpretação jurídica não consiga acompanhar o saber do linguista emérito.
Além disso, é muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e Porugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos países interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do português, se pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em Portugal, consagra uma série de enormidades que não estão, nem podem estar, a ser aplicadas no Brasil e que aumentam a desconformidade com a maneira como a língua se escreve de um lado e do outro.
Talvez tenhamos de esperar que se realize um ano de Angola em Portugal e de Portugal em Abgola para o problema merecer atenção. E então não será de estranhar que tenhamos de agradecer aos angolanos um rigor na grafia da nossa língua de que, por cá, nós portugueses já não somos capazes.” (VGM, in DN, 21/11/2012, p. 54)
3. “ O Cadáver adiado”
“No Brasil tratava-se fundamentalmente de sacrificar o trema e o acento agudo em meia dúzia de casos. E ninguém se resignava às regras absurdas de emprego do hífen… Com isso, bastou o abaixo-assinado de uns 20 mil cidadãos para se adiar a aplicação de uma coisa trapalhona denominada Acordo Ortográfico (AO). Os políticos ouviram a reclamação, estudaram-na e assumiram-na, e a sr.ª Rousseff decidiu.
Em Portugal o número de pessoas que tomaram posição contra o AO já ultrapassava as 120 mil em Maio de 2009. Hoje, e considerando tanto o Movineto contra o AO de então como a actual Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC) com a mesma finalidade, esse número é incomparavelmente mais elevado.
Portugal bem pode propor a todos os quadrantes ideológicos e parlamentares da sua classe política que se assoem agora a este cruel guardanapo.
Faltou-lhes a coragem de respeitar as opiniões autorizadas, a capacidade de reflectir com lucidez sobre o assunto, a vontade cívica de se informarem em condições.
Acabaram a produzir este lindo serviço com a notável excepção do relatório Barreiras Duarte, aprovado por unanimidade na Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura (Abril de 2008), mas que não teve qualquer efeito prático.
A CPLP, ao engendrar o torpe segundo protocolo modificativo do AO, violou sem escrúpulos o direito internacional e traiu a língua portuguesa. Não serve. Mostrou total inconsciência, incompetência, incapacidade e oportunismo na matéria.
Agora, é evidente que, de três uma: ou o Brasil vai propor a revisão do AO ou tratará de a empreender pro domo sem ouvir os outros países de língua portuguesa, ou fará como em 1945, deixando-o tornar-se letra morta por inércia pura e simples.
No primeiro caso, mostra-se a razão que tínhamos ao insistir na suspensão do AO, a tempo, para revisão e correcção. A iniciativa deveria ter sido portuguesa e muitos problemas teriam sido evitados.
No segundo caso, mostra-se além disso que continuamos a ser considerados um país pronto a agachar-se `mercê das conveniências alheias. Com a desculpa, a raiar um imperialismo enjoativo, da “unidade” da língua, em Portugal haverá sempre umas baratas tontas disponíveis para se sujeitarem ao que quer que o Brasil venha a resolver quanto à sua própria ortografia. Foi o que se passou em 1986 e 1990.
No terceiro caso, mostra-se ainda que ficaremos reduzidos a uma insignificância internacional que foi criada por nós mesmos.
Mas, em qualquer dos casos, a situação será muito diferente da actual.
O Acordo Ortográfico ficará incólume e as suas regras serão revistas e modificadas. Ninguém esconde no Brasil esta necessidade de revisão e correcção, tão cultural, social e politicamente sentida que está na base do adiamento decretado.
Se as regras vão ser modificadas, e quanto a este ponto não pode subsistir qualquer espécie de dúvida, será um absurdo absoluto que se mantenha a veleidade de as aplicar em Portugal na sua forma presente.
Não se pode querer contestar oficial ou, sequer, oficiosamente a existência de três grafias, nada menos de três, como resultado grotesco de uma tentativa sem pés nem cabeça de uniformização delas em todos os países que falam português: a brasileira, a angolama e moçambicana e a irresponsável que é a portuguesa.
Torna-se imperativo o reconhecimento oficial de que a única ortografia que está em vigor em Portugal é a que já vigorava antes das desastrosas pantominas que foram empreendidas pelo Governo Sócrates.
No meio desta vergonha, o mais simples é:
a) reconhecer-se que o AO nunca entrou em vigor, por falta de ratificação de todos os estados signatários;
b) reconhecer-se que, para além disso, continua a faltar um pressuposto essencial da sua aplicação que é o vocabulário ortográfico comum que nem sequer foi iniciado;
c) suspender-se tudo o que se dispôs em Portugal, nomeadamente no plano das escolas, dos livros escolares e dos serviços do Estado;
d) tomar-se a iniciar«tiva de negociações internacionais com vista a uma revisão e correcção do AO por especialistas dignos desse nome.
O Acordo Ortográfico é tão mal feito que nem o Brasil o aceita… Logo à nascença, já era um cadáver adiado. Com vénia de Fernando Pessoa, agora não se pode deixar que, sem a necessária revisão, ele procrie seja o que for.” (VGM in DN, 02/01/2013, p. 54).
4. “Urgentemente”
“Há uma semana, escrevi nesta coluna sobre o adiamento de aplicação do Acordo Ortográfico no Brasil, por decisão da presidente Dilma Rousseff, que atendeu uma série de protestos e manifestações pedindo a suspensão e revisão do documento.
As implicações da situação assim criada, no plano internacional, são por demias evidentes. Escusamos de pensar que as Repúblicas Populares de Angola e Moçambique vão ratificar o AO nos próximos tempos, uma vez que não o fizeram quando não se esperava esta reviravolta da posição brasileira e é perfeitamente claro que nada farão enquanto não souberem em que param as modas.
Esses países vão, e muito bem, manter o satatu quo e a norma ortográfica vigente que, repito mais uma vez, não é, nem pode ser, a do Acordo Ortográfico.
Sendo assim, e se Portugal nada fizer, o comando das operações ficará nas mãos do Brasil, que nunca mais aplicará o AO na sua forma actual. Note-se bem, nunca mais!
Não digo isto com pruridos patriotinheiros, mas na previsão de que as modificações que venham a ser introduzidas no AO corresponderão apenas a características fonéticas e ortográficas do português do Brasil, mantendo-se as diferenças em relação à língua que se fala e escreve deste lado do Atlântico.
Isto é, nesse caso o Brasil levará a efeito mais uma sua reforma ortográfica própria,arredando várias das regras do Acordo Ortográfico mais gravemente lesivas da língua que é falada nos restantes sete países interessados. Nestas circunstâncias, Portugal não tem qualquer interesse em aplicar o AO numa forma que, afinal, não vai ser adoptada em parte nenhuma…
Há, dir-se-á, muita coisa que já se escreve em conformidade com as suas bases, muitos livros escolares que também já são impressos nesses termos, muitas práticas públicas que procuram já aplicar as normas referidas, E portanto, voltar atrás implicaria custos muito consideráveis que a crise actual não nos permite suportar.
É óbvio que os custos não poderão deixar de se elevados. Os erros, por vezes, pagam-se muito caro, e este é um desses casos. Mas os custos, nesse caso, não podem ser desculpas para não se fazer nada!
A tudo isto pode sempre objectar-se de várias maneiras. Sem voltar a invocar os muitos argumentos jurídicos de que os oponentes do AO têm lançado mão, temos, por um lado, que não faz qualquer sentido aplicar-se uma “reforma” que se tornou substantivamente inaplicável e cujos objectivos e pressupostos se evaporaram na prática com o adiamento brasileiro.
Por outro lado, e no tocante às alterações nos livros e manuais escolares e às práticas do ensino em todos os seus níveis, deverá ponderar-se que, quanto mais tarde for alterada a presente situação, mais cara ela sairá ao povo português.
E sairá mais cara no plano cultural, no plano económico e no plano financeiro.
No plano cultural, porque será cada vez mais difícil a correcção e a erradicação dos erros e entretanto a tendência será para que a memória da ortografia de 1945 se vá perdendo injustificadamente.
No plano económico, porque em nada lucrará esta língua que é falada em oito países, enquanto factor de crescimento, de desenvolvimento e de progresso à escala planetária, com a adopção por parte de Portugal de bizarras soluções que mais ninguém adoptará.
No plano financeiro, porque, quanto mais tarde se proceder às inevitáveis modificações e correcções, mais dinheiro custará essa operação à escala do ensino, da edição, dos serviços públicos, dos jornais, etc., etc.
A questão escolar é especialmente relevante. Talvez o problema possa ser atenuado pelo facto de haver manuais, impressos sem as regras aberrantes do AO, cuja validade ainda se mantenha. Num período de transição e dado que os livros escolares valem por vários anos, é natural que não tenham todos sido substituídos.
Seja como for, qualquer opção que envolva a continuação da aplicação do AO na sua forma presente acabará por nos sair mais cara do que a sua suspensão imediata.
Uma criteriosa formação dos professores e dos responsáveis pela educação, uma acção bem desenvolvida e considerada de serviço público por parte da televisão, uma campanha bem estruturada na comunicação social para a qual se concite a adesão dos próprios jornais, podem ajudar a reduzir os custos envolvidos.
Impossível não é. E não pode deixar de ser feito. Urgentemente. (VGM, in DN, 09/01/2013, p.54)
[ Caro leitor, deparante de acaso ou adrede visitante: se está interessado mesmo em lutar pela defesa da nossa língua, na linha do que é dito, nesta crónica de VGM e em todas as postagens deste blogue atinentes ao mal-afamado Acordo Ortográfico da nossa desgraça e através do qual se pretende desgraçar a nossa querida Língua, procure ler todas essas referências e, se estiver convencido como nós estamos, leia neste mesmo blogue a postagem “Uma ILC contra o Acordo Ortográfico”. Depois, é só clicar neste link e assinar: http://ilcao.cedilha.net ]