SENHORA DA BOA MORTE – SENHORA DA EUTANÁSIA
Assumpta est Maria in coelum. Assim se regista na liturgia católica o milagre, o mistério, o dogma da assunção de Maria (assumptio Mariae). E se bem considerarmos, todos os grandes momentos de Maria são ‘milagrosos’ e como tais celebrados: na liturgia, no calendário e na dogmática: concebida sem pecado (imaculada Conceição, (concepção) – Immaculata Conceptio Mariae); virgem antes, no e depois do parto, ‘assumpta’ ao céu (dogma definido pela ‘infalibilidade’ de Pio XII em 1950, baseado em dois argumentos: já o povo a celebrava há muito tempo, documentos duvidosos só a partir do séc. V; a sua dignidade de Mãe de Jesus só lhe podia dar direito a uma morte assim: morrer sim, de qualquer forma tinha de morrer, pois também o filho morreu; mas logo levada em corpo e alma – assumpta (para o Céu…). É daí que vem a Senhora da ‘Boa Morte’, ou seja (recorrendo ao grego) a Senhora da ‘Eutanásia’. Estão a ver a eutanásia no dogma cristão? Não com esse nome que poderia ser suspeito, claro…
“Eutanásia (do grego euthanasia) morte sem sofrimento, morte bela, morte feliz” É o que diz o Lello Prático Ilustrado, 1981: “ Mas vejamos como a Enciclopédia Diário de Notícias, Círculo de Leitores, mais recente, já impregna o conceito, de ética, mesmo de moral, de que se reservam o direito de propalar para que ninguém cometa esse pecado horrendo (?!…) (Vejam bem: uma morte feliz, sem dor, uma boa morte pode ser pecado…, pecado horrendo!…); e que, como tal, indirectamente, se julgam no direito de pregar. Vejam o ‘sermão’ da dita enciclopédia: “Eutanásia, s. f. [sem etimologia]. É a acção de pôr termo voluntariamente e de forma indolor à vida de uma pessoa. Condenável moralmente, a eutanásia activa, não o é, porém, a eutanásia passiva ou ortotanásia, que consiste em pôr termo ao prolongamento artificial da vida humana reduzida já ao estado meramente vegetativo, e sem esperança alguma de recuperação”. É óbvio que este discurso (ou sermão?) da Enciclopédia serve às mil maravilhas para os que, na Assembleia da República ou na sociedade civil, se haverão de opor sem dúvida à eutanásia, à morte ‘feliz’ a que todos nós temos direito; à boa morte, estão vocês a ver?, À eutanásia.
Sim, porque, etimologicamente – eutanásia [do gr. ‘euthanasia’, morte ‘doce e fácil’, pelo lat. euthanasia, ‘id’, pelo fr. ‘euthanasie, ‘eutanásia’ (Dic. Porto Editora 2003)’quer dizer isso mesmo, ‘boa morte’, dado que o sufixo grego ‘eu’ significa: bom, saudável, fácil, feliz; o elemento thanasia deriva de thanatos (=morte). Se consultarmos o Grande Vocabulário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, Círculo de Leitores, lá encontraremos cerca de 500 vocábulos em que entra esse prefixo ‘eu’, muitos, do vocabulário da medicina. Só alguns exemplos: euforia: sensação fisiológica de bem-estar; eucalipto: boa sombra (árvore da boa sombra, de sombra saudável); eufemismo: suavização de uma expressão ou de uma ideia dura ou desagradável; eufonia: suavidade ou elegância na pronúncia; eugenia (boa geração), Eugénio (bem gerado), eupneia: facilidade de respiração, etc., etc. E, portanto, EUTANÁSIA.
Eutanásia, pois. Ora, se os crentes de grande parte das religiões crêem que só Deus (ou deus, ou os deuses) é (são) senhor(es) da vida e da morte, isso é lá com eles, que acreditem e ajam em conformidade. O que não têm é o direito de negar aos descrentes, aos ateus, a quem quer que seja, a todos, o direito de pensar e agir também em conformidade com a sua descrença; e até mesmo aos crentes num Deus que seja misericordioso e bom para com as suas criaturas, fazer evoluir o seu pensamento no sentido de que mesmo Deus não se deverá opor a que os mortais tenham morte ‘doce e feliz’ segundo a vontade (ou a possibilidade…) de cada um.
Porque a vida é nossa. Porque a minha vida é minha. Por isso ela poderá não depender de um deus cruel, ou de uma cruel sociedade, amantes do sofrimento dos outros (sadismo); ou amantes do próprio sofrimento (masoquismo); ou de uma coisa e da outra (sadomasoquismo). Não podemos esquecer que a mentalidade das sociedades sobre a morte assenta em lendas e mitos. Já ninguém poderá ter medo do inferno pela simples razão de que já ninguém crê no inferno. E quem é que acredita ainda no juízo final? Ou em outras coisas míticas ou lendárias assim, que radicam todas nas antigas mitologias fantásticas?
E assim teríamos a eutanásia [a boa morte], nas leis e na vida, ou seja, no fim da vida.
Isto quer dizer o quê? Quer dizer que milhões e milhões de seres humanos, condenados a sofrer por tempo desmedido os desmesurados e horríveis sofrimentos que lhes causam as suas maleitas incuráveis, os seus tumores malignos, cancros e tantas outras em que os pacientes não podem morrer, devendo, por imperativos religiosos, morais e éticos (a que são alheios), suportar a dor, a dor atroz, a dor cruel, ‘doença prolongada’ por anos e anos, até que Deus (vejam bem: Deus!…) se digne, na sua ‘infinita misericórdia’, conceder por especial favor o ‘golpe de misericórdia…’. E os crentes aceitam! E os não-crentes?
Os crentes e os não crentes, quer queiram quer não queiram, quer creiam quer não creiam, estão sujeitos a ter de suportar essa ignomínia (isto sim é ignominioso!), porque essas comissões de ética constituídas por crentes, beatos e masoquistas, acham que o paciente só tem que aceitar sem protesto, resignadamente, pelos seus pecados que não têm (e mesmo que tivessem), mas que lhe atribuem.
E as sociedades, e as culturas, impregnadas dessas mistificações irracionais, dão pareceres, fomentam legislação, obrigam a medicina e seus profissionais a constrangerem-se, esses sim, até à ignomínia, sem misericórdia nem humanidade!
[Eutanásia?! Anathema sit!(?!…]
Ode à Boa Morte
Assumpta est Maria in coelum
(Da liturgia )
Começa-se aqui por uma prece virtual
à senhora virtual da boa morte
à senhora virtual da eutanásia
que ninguém acredita já
além de crentes ou crédulos
que assumpta tivesse sido
assumpta est Maria in coelum
ou sabe-se lá bem para onde…
Queremos a boa morte, ‘doce e feliz’.
para sermos felizes antes dela
aqui, onde a natureza nos pôs,
no dia-a-dia da nossa vida.
Da nossa vida, ouviram bem!
Se a ciência inventou a anestesia
para precaver o sofrimento
porque haveremos de cultivar a dor?!
A vida é nossa, a dor da natureza.
A ciência não é deus
mas pode mais do que a crença nele.
Queremos ser menos infelizes
e assumir o direito que nos assiste
o direito à ‘morte feliz’
o direito à ‘boa morte’!
Direito divino? positivo?
ou qualquer outro que tenham inventado?…
É claro que não! Sim, o direito natural!
Antes que a dor insuportável nos traga o desespero,
temos direito à Boa Morte!
temos direito à Eutanásia!!
Não me venham cá com mitos e fantasmas
como se ditados fossem
da ciência ética
ou de algum Deus
ou de algum deus
que a sê-lo só pode ser sádico!
A vida que nos deram a Natureza e o Acaso
desde a mãe que nos pariu,
agora, é nossa!
Podemos dispor dela:
por nós próprios
ou pedindo ajuda, socorro, eutanásia
a nosso belprazer
quando nos prouver.
Quem se arroga por aí o direito
de forjar éticas e morais
(olhem lá, eu disse imorais?)
De mandar por nós no que só é nosso:
A nossa vida?!
Morrer bem não é morrer confessado
não é morrer ungido.
Morrer bem é morrer sem dor:
insofrido
eutanasiado.
Morrer feliz
não para ser ‘assumpto’
mas tão só para acabar aqui.
Doutor…
por favor…
Ajude-me…
a morrer bem…
Boa Morte…
Eutanásia…
Sim!…
António Marques
Pombal, Janeiro/2010
P.S.: [Actualização do trabalho e acrescentamento do seguinte] Já tinha este trabalho – prosa e verso – escrito há muito tempo, e mesmo colocado no blogue, quando li, na primeira página do DN de 14/02/16, o texto informativo sobre o tema – EUTANÁSIA – do qual, em tempo e com a devida vénia, se transcreve aqui o primeiro parágrafo:
“Morte assistida. Nos últimos anos, quatro residentes em Portugal puseram termo à vida com o apoio da associação Dignitas, com sede em Zurique, e duplicou o número de cidadãos nacionais que se tornaram membros da instituição. Duas dezenas pediram ajuda para morrer e estão à espera…” [cont. pp 4 e 5].
Comentário: “Excelente reflexão, que chegaria para definir a elevada craveira intelectual de qualquer pessoa” (Dr. Cândido Ferreira).