EUTANÁSIA (1)

SENHORA DA BOA MORTE – SENHORA DA EUTANÁSIA

Assumpta est Maria in coelum. Assim se regista na liturgia católica o milagre, o mistério, o dogma da assunção de Maria (assumptio Mariae). E se bem considerarmos, todos os  grandes momentos de Maria são ‘milagrosos’ e como tais celebrados: na liturgia, no calendário e na dogmática: concebida sem pecado (imaculada Conceição, (concepção) – Immaculata Conceptio Mariae); virgem antes, no e depois do parto, ‘assumpta’ ao céu (dogma definido pela ‘infalibilidade’ de Pio XII em 1950, baseado em dois argumentos: já o povo a celebrava há muito tempo, documentos duvidosos só a partir do séc. V; a sua dignidade de Mãe de Jesus só lhe podia dar direito a uma morte assim: morrer sim, de qualquer forma tinha de morrer, pois também o filho morreu; mas logo levada em corpo e alma – assumpta (para o Céu…). É daí que vem a Senhora da ‘Boa Morte’, ou seja (recorrendo ao grego) a Senhora da ‘Eutanásia’. Estão a ver a eutanásia no dogma cristão? Não com esse nome que poderia ser suspeito, claro…

“Eutanásia (do grego euthanasia) morte sem sofrimento, morte bela, morte feliz” É o que diz o Lello Prático Ilustrado, 1981: “ Mas vejamos como a Enciclopédia Diário de Notícias, Círculo de Leitores, mais recente, já impregna o conceito, de ética, mesmo de moral, de que se reservam  o  direito de propalar para que ninguém cometa esse pecado horrendo (?!…) (Vejam bem: uma morte feliz, sem dor, uma boa morte pode ser pecado…, pecado horrendo!…); e  que, como tal, indirectamente, se julgam no direito de pregar. Vejam o ‘sermão’ da dita enciclopédia: “Eutanásia, s. f. [sem etimologia]. É a acção de pôr termo voluntariamente e de forma indolor à vida de uma pessoa. Condenável moralmente, a eutanásia activa, não o é, porém, a eutanásia passiva ou ortotanásia, que consiste em pôr termo ao prolongamento artificial da vida humana reduzida já ao estado meramente vegetativo, e sem esperança alguma de recuperação”. É óbvio que este discurso (ou sermão?) da Enciclopédia serve às mil maravilhas para os que, na Assembleia da República ou na sociedade civil, se haverão de opor sem dúvida à eutanásia, à morte ‘feliz’ a que todos nós temos direito; à boa morte, estão vocês a ver?, À eutanásia.

Sim, porque, etimologicamente – eutanásia [do gr. ‘euthanasia’, morte ‘doce e fácil’, pelo lat. euthanasia, ‘id’, pelo fr. ‘euthanasie, ‘eutanásia’ (Dic. Porto Editora 2003)’quer dizer isso mesmo, ‘boa morte’, dado que o sufixo grego ‘eu’ significa: bom, saudável, fácil, feliz; o elemento thanasia deriva de thanatos (=morte). Se consultarmos o Grande Vocabulário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, Círculo de Leitores, lá encontraremos cerca de 500 vocábulos em que entra esse prefixo ‘eu’, muitos, do vocabulário da medicina. Só alguns exemplos: euforia: sensação fisiológica de bem-estar; eucalipto: boa sombra (árvore da boa sombra, de sombra saudável); eufemismo: suavização de uma expressão ou de uma ideia dura ou desagradável;  eufonia: suavidade ou elegância na pronúncia; eugenia (boa geração), Eugénio (bem  gerado), eupneia: facilidade de respiração, etc., etc. E, portanto, EUTANÁSIA.

Eutanásia, pois. Ora, se os crentes de grande parte das religiões crêem que só Deus (ou deus, ou os deuses) é (são) senhor(es) da vida e da morte, isso é lá com eles, que acreditem e ajam em conformidade. O que não têm é o direito de negar aos descrentes, aos ateus, a quem quer que seja, a todos, o direito de pensar e agir também em conformidade com a sua descrença; e até mesmo aos crentes num Deus que seja misericordioso e bom para com as suas criaturas, fazer evoluir o seu pensamento no sentido de que mesmo Deus não se deverá opor a que os mortais tenham morte ‘doce e feliz’ segundo a vontade (ou a possibilidade…) de cada um.

Porque a vida é nossa. Porque a minha vida é minha. Por isso ela poderá não depender de um deus cruel, ou de uma cruel sociedade, amantes do sofrimento dos outros (sadismo); ou amantes do próprio sofrimento (masoquismo); ou de uma coisa e da outra (sadomasoquismo). Não podemos esquecer que a mentalidade das sociedades sobre a morte assenta em lendas e mitos. Já ninguém poderá ter medo do inferno pela simples razão de que já ninguém crê no inferno. E quem é que acredita ainda no juízo final? Ou em outras coisas míticas ou lendárias assim, que radicam todas nas antigas  mitologias fantásticas?

E assim teríamos a eutanásia [a boa morte], nas leis e na vida, ou seja, no fim da vida.

Isto quer dizer o quê? Quer dizer que milhões e milhões de seres humanos, condenados a sofrer por tempo desmedido os desmesurados e horríveis sofrimentos que lhes causam as suas maleitas incuráveis, os seus tumores malignos, cancros e tantas outras em que os pacientes não podem morrer, devendo, por imperativos religiosos, morais e éticos (a que são alheios), suportar a dor, a dor atroz, a dor cruel, ‘doença prolongada’ por anos e anos, até que Deus (vejam bem: Deus!…) se digne, na sua ‘infinita misericórdia’, conceder por especial favor o ‘golpe de misericórdia…’. E os crentes aceitam! E os não-crentes?

Os crentes e os não crentes, quer queiram quer não queiram, quer creiam quer não creiam, estão sujeitos a ter de suportar essa ignomínia (isto sim é ignominioso!), porque essas comissões de ética constituídas por crentes, beatos e masoquistas, acham que o paciente só tem que aceitar sem protesto, resignadamente, pelos seus pecados que não têm (e mesmo que tivessem), mas que lhe atribuem.

E as sociedades, e as culturas, impregnadas dessas mistificações irracionais, dão pareceres, fomentam legislação, obrigam a medicina e seus profissionais a constrangerem-se, esses sim, até à ignomínia, sem  misericórdia nem humanidade!

[Eutanásia?! Anathema sit!(?!…]

Ode à Boa Morte
Assumpta est Maria in coelum
(Da liturgia )

Começa-se aqui por uma prece virtual
à senhora virtual da boa morte
à senhora virtual da eutanásia
que ninguém acredita já
além de crentes ou crédulos
que assumpta tivesse sido
assumpta est Maria in coelum
ou sabe-se lá bem para onde…

Queremos a boa morte, ‘doce e feliz’.
para sermos felizes antes dela
aqui, onde a natureza nos pôs,
no dia-a-dia da nossa vida.

Da nossa vida, ouviram bem!

Se a ciência inventou a anestesia
para precaver o sofrimento
porque haveremos de cultivar a dor?!
A vida é nossa, a dor da natureza.
A ciência não é deus
mas pode mais do que a crença nele.

Queremos ser menos infelizes
e assumir o direito que nos assiste
o direito à ‘morte feliz’
o direito à ‘boa morte’!
Direito divino? positivo?
ou qualquer outro que tenham inventado?…

É claro que não! Sim, o direito natural!

Antes que a dor insuportável nos traga o desespero,
temos direito à Boa Morte!
temos direito à Eutanásia!!

Não me venham cá com mitos e fantasmas
como se ditados fossem
da ciência ética
ou de algum Deus
ou de algum deus
que a sê-lo só pode ser sádico!

A vida que nos deram a Natureza e o Acaso
desde a mãe que nos pariu,
agora, é nossa!

Podemos dispor dela:
por nós próprios
ou pedindo ajuda, socorro, eutanásia
a nosso belprazer
quando nos prouver.

Quem se arroga por aí o direito
de forjar éticas e morais
(olhem lá, eu disse imorais?)
De mandar por nós no que só é nosso:
A nossa vida?!

Morrer bem não é morrer confessado
não é morrer ungido.

Morrer bem é morrer sem dor:
insofrido

eutanasiado.

Morrer feliz
não para ser ‘assumpto’
mas tão só para acabar aqui.

Doutor…
por favor…
Ajude-me…
a morrer bem…
Boa Morte…
Eutanásia…
Sim!…

António Marques
Pombal, Janeiro/2010

P.S.: [Actualização do trabalho e acrescentamento do seguinte] Já tinha este trabalho – prosa e verso – escrito há muito tempo, e mesmo colocado no blogue, quando li, na primeira página do DN de 14/02/16, o texto informativo sobre o tema – EUTANÁSIA – do qual, em tempo e com a devida vénia, se transcreve aqui o primeiro parágrafo:

“Morte assistida. Nos últimos anos, quatro residentes em Portugal puseram termo à vida com o apoio da associação Dignitas, com sede em Zurique, e duplicou o número de cidadãos nacionais que se tornaram membros da instituição. Duas dezenas pediram ajuda para morrer e estão à espera…” [cont. pp 4 e 5].

Comentário: “Excelente reflexão, que chegaria para definir a elevada craveira intelectual de qualquer pessoa” (Dr. Cândido Ferreira).

O grama e a celeuma

(A) celeuma s. f. (Do grego keleusma pelo latino celeusma): vozearia de pessoas que trabalham; algazarra; barulho; debate aceso (dos dicionários). Em grego, substantivo do género neutro: keleusma, keleusmatos. Em latim: celeusma, celeusmatis, género neutro; ou celeusma, celeusmae, género feminino.

É, pois, curioso verificar que, sendo, no grego, do género neutro, como geralmente são os substantivos terminados em ‘a’, esta palavra, ao passar pelo latim, manteve, nesta língua, o género neutro – celeusma, celeusmatis. Os falantes latinos arranjaram a versão da mesma palavra, género feminino, tema em ‘a’: celeusma, celeusmae (assim os regista o Torrinha). Em português, os falantes preferiram o género neutro que já vinha do grego. Isto, de uma maneira geral, para um grande número de palavras terminadas em ‘a’ que, vindas do grego, em português adoptaram, geralmente, o género masculino. São umas boas dezenas de palavras, talvez centenas (não me dei ao trabalho de as contar, para o que precisaria de muito tempo); são, geralmente, de carácter erudito na área científica, como: o grama (seus múltiplos e submúltiplos: o hectograma, o quilograma, o decigrama, o miligrama, etc.); o problema, o dilema, o programa, o panorama, o teorema, o fonema, o grafema, o genoma, o sintoma, o esquema, o enfisema, o tema, o lema, o eczema, o edema, o poema, o emblema, o estratagema, o cinema, etc., etc., etc.

Há, no entanto, nesse grupo de palavras terminadas em ‘a’ vindas do grego, de género neutro, algumas que, por razões de carácter linguístico, nem se sabe bem porquê, em vez de passarem do neutro grego para o masculino, como geralmente aconteceu, inclinaram-se para o género feminino, como, por exemplo: a fleuma, a reuma, e – cá está – a celeuma. Seria caso para perguntar se, também aqui no processo linguístico, nem todos os neutros conseguiram escapar à sedução do feminino?… E então, o grama do título, também é masculino? Pois, meus caros, era mesmo aí que eu queria chegar. A introdução pode parecer grandinha, mas eu achei que assim deveria ser, para se aprender melhor a coisa. Que coisa? Que a palavra “grama”, unidade de massa (ou de peso) na língua portuguesa é do género masculino. Vejam.

(O) grama s.m. FÍSICA, unidade de massa do sistema CGS (centímetro, grama, segundo). Do grego gramma.

Esta, como a generalidade das suas manas (as tais vindas do grego neutro) conseguiu também fugir à sedução feminina. (Não confundir com ‘a grama’ erva). Trata-se, pois, de um grama, dois gramas, vinte e um gramas, duzentos gramas, quinhentos gramas, mil e seiscentos gramas… Mil e seiscentos gramas, quantos quilogramas são? Até uma criança da escola sabe: é um quilo (um quilograma) e seiscentos gramas. Seiscentos, estão vocês a ouvir? Não, seiscentas gramas não, porque este grama é masculino! Não confundir, pois, com ‘a grama’ erva!

(A) grama s.f.(do latino gramina) BOTÂNICA, erva rasteira, rizomatosa, prejudicial às culturas; graminheira.

Todas as vezes que ouço alguém à minha volta dizer “quantas gramas são? quinhentas gramas?”, apetece-me dizer-lhe, como dizia aos alunos na escola: “Quinhentas gramas, não, meninos! As gramas são ervas!”

Ouviram bem? Em peso, são quinhentos gramas! E não se pense que é assim tão raro ouvir essas incorrecções, sobretudo quando se anda próximo de profissionais, aliás, bons profissionais que, na sua profissão, lidam a toda a hora com os gramas, com os miligramas, e até com os microgramas!… Não esqueçam então: as gramas são ervas! Os gramas são peso!

Dois Sujeitos com S grande

Terça, 09 de Outubro de 2012. “O Amor É”. Inês Menezes propõe o tema: “racionamento ou racionalidade”. E o professor Machado Vaz expõe. Expõe e – me parece – expõe bem. “Racionamento” lembra logo a guerra. Os mais novos não se lembram. Mas os ‘entas’, como eu… Oh se lembram! “Racionamento” lembra “ração”: tudo era “racionado” naquela malvada guerra de 40! E os tais da Ética não tinham (não têm) outra palavra! E, no entanto, palavras não faltam. Vejam: racionalidade, razoabilidade e até ratio, que os economistas, ignorantes do latim (para não dizer, também, ignorantes da economia…), masculinizaram: para eles é “o rácio”…

Naquela situação de racionalizar os cuidados dos doentes de gravidade (que já não terão mais do que dois anos de vida…), quem decide? Quem é o sujeito da decisão? Calma aí! “São dois os Sujeitos. Com S grande! O técnico profissional e o paciente”! Foi o professor quem o disse.

E alguém, de vocês, achará que não está bem dito? Recomendo-vos, então, Comunicação em Contexto Clínico, de José M. Mendes Nunes (Lisboa, 2010). É só clicar (no título) e vão lá dar. Experimentem ler o capítulo 5: “MÉTODO CLÍNICO CENTRADO NO PACIENTE”. Experimentem mesmo! Detenham-se na Fig. 7, página 62 e, já agora, a Fig. 8, página 64.

Nesse ponto, uma citação:

“Nos anos 70, George Engel defende que só a abordagem simultânea das dimensões biológicas, psicológicas e sociais da doença permitem a compreensão e a resposta adequada ao sofrimento dos doentes. Nascia o modelo bio-psico-social, defendendo uma abordagem holística em oposição ao modelo biomédico prevalente.”

E a propósito. Então não foi já Hipócrates (séc. IV a. C) que descobriu que “não há doenças, há doentes”? Sim, o tal do juramento!

Para terminar mesmo, só mais uma citação:

“O MÉTODO CLÍNICO CENTRADO NO PACIENTE (MCCP). Para McWhinney, estar centrado no paciente significa estar aberto aos sentimentos do paciente, significa chegar a estar envolvido com o paciente de um modo que dificilmente se consegue se seguirmos o velho método (o biomédico) [centrado no médico, pois claro]”.

Testamento vital – Eutanásia (= boa morte)

Não terá sido por acaso que a lei do Testamento Vital tem a data de 15 de Agosto. E ainda bem, não é mau sinal: sinal de que os responsáveis pela data quererão que os cidadãos possam relacionar os conceitos que se desprendem das palavras do título.

Ontem – 15 de Agosto – feriado, dia santo dedicado à Assunção da Virgem ou, como diz o povo, dia da Senhora da Boa Morte.

Boa Morte que em grego se diz, simplesmente, eutanásia, palavra que começa com o prefixo eu que significa ‘bom, doce’, e tanásia que tem a ver com thanatos (= morte). Eutanásia significa, pois, ‘boa morte’, ‘morte doce’.

[Assunção (acção de assumir, de puxar a si). Quantas Marias de Assunção existem por esse mundo de Cristo! Na terminologia teológico-litúrgica, distingue-se de Ascenção, por uma razão de poder. É que, na Assunção, a assumida ou assumpta (assumpta est Maria in coelum) não é o sujeito da acção: a Virgem foi assumida ou assumpta (por Deus). Para o Céu. Na Ascenção, o objecto – Cristo – é objecto e sujeito: ele sobe pelo seu próprio poder. (O que fica dito é o que se deduz de qualquer compêndio de Teologia Dogmática)].

(Sobre a eutanásia ler, a propósito, a minha postagem ‘Senhora da boa morte – Senhora da eutanásia’).

Parónimos ou quase: irradiar / erradicar

“Comité Olímpico Português pondera erradicação de Carolina Borges” (in JN, 09.08.2012: http://www.jn.pt/PaginaInicial/Desporto/Interior.aspx?content_id=2712358)

Sem me querer meter na discussão sobre o que pretende o Comité Olímpico Português, no sentido de penalizar a atleta Carolina, quero apenas pegar no uso – que me parece incorrecto – da palavra ‘erradicar/erradicação’.

É claro que, nos dois verbos do título, além da diferença etimológica, há também uma diferença semântica.

Irradiar – Trata-se do verbo  radiar, que deriva do latino radiare (com o radical de radiu- = raio). O prefixo ‘in’ (com o ‘n’ assimilado pelo ‘r’ inicial da primitiva) reforça o sentido de movimento: afastar de si (de um centro ou de uma coisa ou de uma ideia), espalhar, difundir, mandar para fora, tendo em vista o âmbito radial do centro de qualquer superfície. Há aqui um certo sentido horizontal, em relação a uma coisa que se espalha a partir de um centro.

Erradicar – trata-se do verbo radicar que deriva do latino radicare (com o radical de radice– = raiz), com o prefixo ‘e’ que significa ‘para fora’: puxar para fora pela raiz, arrancar qualquer coisa pela raiz. Há um certo sentido vertical, de baixo para cima.

Ter em conta, nos dois exemplos, o sentido próprio e o sentido figurado.
É claro que os senhores do Comité terão querido dizer irradiar

“O amor é…”

“O amor é…”, foi, neste Natal de 2011, uma longa exposição sobre Cristo, eu diria um longo sermão cristológico, em que foi evidenciado o ‘homem’ mas não negligenciado o ‘deus’… Durou para aí uma hora (dava para ouvir um belo sermão de Vieira), e foi proferido pelo ateu (acho que ele se diz) Júlio Machado Vaz. E eu cheguei a uma conclusão: com ateus assim, os cristãos podem prescindir de cardeais a pregar mensagens de Natal. Poderia, ao menos, o Senhor Professor Psi substituir o epíteto ‘ateu’ pelo seu eufemismo ‘agnóstico’, tão do gosto de políticos que, tendo uma prática ateísta (e decerto um pensar…), preferem o eufemismo para não dificultar uma certa relação frontal e não afastar o povo mais ou menos crente de votar neles. Gostaria de perguntar ao ilustre professor, psiquiatra e sexólogo (talvez não ficasse nada mal, aqui, acrescentar teólogo…) como é que ele explica que todos os grandes dogmas de todas as religiões, incluindo o cristianismo (ou sobretudo o cristianismo?) têm na base um mito, uma lenda, qualquer coisa inacreditável e inexplicável a não ser por milagre, por intervenção sobrenatural, que ninguém ainda provou até hoje, parece-me a mim (o ónus da prova não está do lado dos descrentes…). Experimente abrir qualquer um dos quatro volumes da Synopsis Theologiae Dogmaticae, de Tanquerey, e veja como tudo ali é provado… Só, como exemplo, uns tantos dogmas: pecado original; virgindade de Maria – antes, durante, e depois do parto; imaculada concepção; infalibilidade do papa; divindade de Cristo; etc, etc. Folheie, são quatro volumes. Posso emprestar… E, já agora, fora do Tanquerey, mas bem oportuna na actualidade, já que foi há pouco proclamado o ano da proclamada Padroeira da América Latina, Nossa Senhora de Guadalupe. Vale a pena investigar a origem da Senhora de Guadalupe. Posso dar uma ajudinha…

Guadalupe (Nossa Senhora de) – REL. Dois famosos santuários conhecem a mesma designação de “Nossa Senhora de Guadalupe”.

Em Espanha. Na prov. de Cáceres, Estremadura, no fim do séc. XIII, o pastor Gil Cordero, por indicação de Nossa senhora teria descoberto uma imagem da Virgem que haveria sido enviada pelo Papa S. Gregório a S. Leandro de Sevilha e ali enterrada, c. 711, durante a invasão sarracena. Em 1329 já existia uma pequena capela. Prodígios vários fizeram acudir cada vez mais peregrinos. Igreja (estilo mudéjar, séc. XIV) e mosteiro (jerónimo) constituem o santuário de N. S. G., de muita devoção em Espanha, sobretudo nos sécs. XIV-XVII, e que por isso foi divulgado pelos novos países de colonização espanhola. N. S. G, em 1928, foi coroada, por Afonso III, como padroeira da Hispanidade.

No México. Nos subúrbios da capital, a 9.12.1531, o nativo João Diogo teria ouvido Nossa Senhora que o mandava ao bispo Zumárraga, para ali, em Tapeyrac, construir uma igreja em sua honra. Ao apresentar, como comprovação, rosas e flores (em pleno Inverno) no bornal em que as levava apareceu pintada uma imagem de Nossa Senhora. É esta a ‘tela’ que se venera no santuário mexicano, elevado a verdadeiro símbolo nacional. A humilde ermida, construída em 14 dias após as aparições, converteu-se em magnífico templo, construído em 1622, substituído, em 1709, pelo actual. O nome de Guadalupe é a forma castelhana, por semelhança com esta invocação mariana, muito conhecida dos Espanhóis da designação náhoa de coatlaxope* – “Aquela que esmagou a serpente”. N. S. G., coroada solenemente, em 1895, como “Rainha do México”, foi declarada, por Pio X, em 1910, Padroeira da América hispânica, e invocada por Pio XII, a 12.10.1945, como Imperatiz da América”. Assina M. Alves de Oliveira.  (Enciclopédia VERBO, Edição Século XXI).

* Nota minha: [“A etimologia talvez esteja no ár. uad al-lubb”. (Dic. Onomástico Pedro Machado]

Por mim, sugeria: Memória do Fogo 1. Os Nascimentos de Eduardo Galeano, tradução de António Marques, ed. Livros de Areia, p. 96: “A Virgem de Guadalupe”, que remete para as fontes: Nigel Davies, Los aztecas, Barcelona, Destino, 1977; Juan Friede, Bartolomé de las Casas: precursor del anticolonialismo, México, Siglo XXI, 1976.

Conceitos sem comentários…

Calúnia – (Do lat. calumnia) Imputação mentirosa que ofende a honra ou a dignidade de alguém.

Difamação –  (Do lat. diffamatione-) Acto ou efeito de difamar (prejudicar a boa fama); acto ou efeito de desacreditar alguém publicamente.
(Dos dicionários)

Nota/esclarecimento: a diferença, desde o direito romano, será esta: a calúnia é, forçosamente, mentirosa; a difamação pode não ser…

A ajuda que nós “imos” receber…

Estávamos no rescaldo da bela sesta, íamos ouvir o noticiário das quinze nesse dia 24 de Agosto. Tratava-se da ajuda que o governo ia dar aos pastores e lavradores do Soajo, devastado pelo fogo. De repente, a minha mulher chama. “Ouve, ouve!” Era o porta-voz dos lavradores: “A ajuda que ‘imos’ receber’ é boa porque é imediata, mas não chega!’”. Vejam vocês! Tinha eu acabado de ler o romance histórico A Voz dos Deuses, de João Aguiar, que tem como protagonistas Viriato e um ‘brácaro-lusitano’, neto de um rei brácaro e letrado o bastante para ser intérprete entre Lusitanos e Romanos. E ouço um português a falar “‘imos’ receber”, aquela primeira pessoa do plural do presente do indicativo, que lhes ficou da lídima forma latina – imus – tal como os invasores a usavam.
E, é claro, lembrei-me de quando eu ensinava na escola os verbos irregulares. Este tem uma particularidade:  o verbo ir, tal como qualquer boa gramática nos informa, conjuga-se com recurso a três temas verbais latinos: ire, vadere e esse. No presente do indicativo, por exemplo – vou, vais, vai, vamos, ides, vão – não é difícil verificar que apenas a segunda pessoa do plural – vós ides – provém de ire; as restantes cinco provêm de vadere. E se formos ao perfeito, todas as formas de todos os tempos do tema do perfeito provêm do verbo esse, do respectivo perfeito. Fui, foste, foi, fomos, fostes, foram (para mais, consultar gramáticas).

Como é que isto pôde acontecer? É uma questão do processo evolutivo das línguas que precisaria de um estudo profundíssimo e exaustivo, que, aqui e agora, escrevinhador e leitores, todos estamos dispensados de o fazer… Mas precisar de passar os setenta para ouvir um dos falantes do nosso querido português usar ‘imos’ na primeira pessoa do plural do presente do indicativo do verbo ir, forma que nos vem do latim clássico tal qual era dita por Cícero (o ‘o’ é uma questão ortográfica convencional), foi para mim um espanto, post meridianum somnum, que é como quem diz depois da soneca do meio-dia (depois da sesta)!

Por falar no verbo ir, lembro-me bem de uma aula em que tentava saber se os alunos o conjugavam correctamente. Pedi a um que dissesse o presente do conjuntivo. E ele começou:

– Que eu vá, que tu vás, que ele vá, que nós vamos, que vós… não sei…
E eu disse:
– Que vós vades, que eles vão.
– Que vós vades, professor?! Isso é português?!

É claro que é. Está sendo pouco usado; se calhar caindo em desuso, mas é o que as gramáticas registam para quem o quiser usar; e eu uso-o quando acho preciso. E porque não? Vamos deixá-lo morrer para que o verbo ir, além de tão embrulhado etimologicamente, fique defectivo?… E do conjuntivo forma-se o imperativo negativo: “filhos, não vades pelo sol, ide pela sombra!” E agora sei que, em alguma parte do país, haverá quem responda: “Sim, pai, nós imos pela sombra”.

Logro/lucro, lograr/lucrar

RESPOSTA A UMA RESPOSTA

“Amigo,

Preciso de referências bibliográficas para um trabalho acadêmico em que abordo apenas superficialmente a etimologia do lucro antes de adentrar no tema central. Será que você pode me passar? Lhe serei eternamente grato.

Bruno Caraciolo

(81) 9606-7464”

Amigo,

1. Responderei apenas com a prata da casa, a saber, recorrendo tão-só ao material de trabalho que me rodeia aqui, pois não tenho, por agora, condições para me sujeitar ao pó das bibliotecas…

2. Antes de mais, quero acrescentar, aos dois dicionários que citei na postagem, mais três dos que tenho aqui ao lado: o da Academia das Ciências de Lisboa que, na entrada “logro”, considera também “desusado” como sinónimo de “lucro”; o Houaiss, que na entrada “logro”, tem a acepção “1 ant. ganho material, lucro, proveito” (abreviatura ant., segundo a chave, significa antigo, correspondendo a Desus. do Lello); e o Aurélio, que na entrada ‘logro’, acepção 4, tem a mesma coisa: ant.

3. Nos meus dicionários latinos, procurei a possível ligação entre o radical de lucro e o radical de luxuria (leitura latina lucsuria) e lux (leitura lucs). A este respeito, o Torrinha não me ajudou nada, mas a proximidade semântica sim: lucrum, luxuria, lux, todas nos remetem para certa euforia, alegria, brilho, ganância e até obscenidade, conceitos que vemos hoje bem apegados à palavra “lucro”…

4. No que o Torrinha me alargou caminho foi ter registado, na entrada “lux, lucis”, o seguinte parêntese recto, assim tal e qual: “[luc <*leuk ‘brilhar’]” (com sinal de longa, que eu não sei como pôr em cima do ‘u’ do radical latino). Ora “leuk” remete-nos para o adjectivo grego leukos que significa “branco” e que aparece numa porção de palavras cognatas, no dicionário grego e nos nossos dicionários, como, por exemplo, “leucócito”, “leucemia”, etc. (Não transcrevo em caracteres gregos, porque já sei que o browser estraga tudo…). Com a prata da casa, lá consegui chegar ao grego…

5. Mais uma coisinha que me está fazendo cócegas na cabeça e que podia muito bem ser, para o apresentador do referido programa, objecto de uma pergunta de jogo da língua. Seria assim: “das palavras divergentes ‘logro/lucro’, ‘lograr/lucrar’, qual delas se instalou primeiro como vocábulo da língua?” Lucro? Não, senhores. Regra geral, a mais antiga é a que nos veio por via popular. E quem souber um bocadinho da história da língua, há-de lembrar-se que as divergentes que nos vieram por via erudita o foram através dos literatos, poetas e escritores do século XVI, como Camões, Ferreira, Miranda e outros ilustres, que promoveram a grandiosa iniciativa de enriquecer o Português Moderno, indo buscar ao latim as palavras que serviram de étimo às que agora chamamos divergentes por via popular. Vamos aos dois pares que nos servem de título. Basta consultar um bom dicionário etimológico, por exemplo o de José Pedro Machado. Quanto a “logro”, lá se regista a sua data de entrada na língua no século XV; para “lucro”, só no século XVII; “lograr”, séc. XIII; “lucrar”, séc. XVII. Confirma a regra.

6. Se das minhas notas você puder tirar alguma ideia proveitosa, não quero que me fique eternamente grato: as palavras da família do advérbio, não tarda que sejam arcaísmos. Quanto a mim, já o são: não creio na absurda eternidade…

Sem proveito ou com algum dele para si, um abraço para você.

António Marques

Nota:
Dicionários que me serviram e que cito:

–Dicionário Complementar da Língua Portuguesa, Augusto Moreno, Edição de 1936
–Dicionário Prático Ilustrado, Lello & Irmãos Editores, 1981
–Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Edição Verbo,2001
–Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa, Edição Círculo de Leitores, 2002
–Novo AURÉLIO, O Dicionário da Língua Portuguesa Século XXI, Editora Nova Fronteira,1999
–Dicionário Latino – Português, Francisco Torrinha, 2º edição, Edições Maranus, 1942
–Dicionário Português-Latino, Francisco Torrinha, Domingos Barreira Editor, Porto, 1939
–Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, Livros Horizonte, 3ª edição, 1977
–Dicionário Grego-Português e Português-Grego, P. Isidro Ferreira, S.J. , 5ª edição 1976

Logro/lucro, lograr/lucrar

Pessoa amiga veio ter comigo para me dizer que, em programa de José Carlos Malato na RTP, ‘Quem Quer Ser Milionário’, a questão linguística era: “qual destas quatro palavras – lucro, farto, largo, fundo – é sinónima de logro“?

A minha resposta imediata foi que, rigorosamente, e tendo em conta o uso actual do português lídimo, nenhuma das quatro se pode dizer que é sinónima de logro; nem mesmo a que terá sido dada como resposta certa: lucro. Vejamos.

Logro e lucro, etimologicamente, são divergentes (=derivam do mesmo étimo latino, lucru). Porém, o processo do uso da língua, como acontece com frequência, afastou semanticamente as duas palavras (vide evolução semântica): lucro é ganho, é ganância, é proveito; logro é engano, é ludíbrio, é ardil. E não é por acaso que o registo dos bons dicionários vai nesse sentido :

“Logro, (L. lucru), m. Acto ou efeito de lograr; burla; engano propositado; ardil.

Lograr. t..Fruir; possuir; gozar; conseguir; alcançar; enganar, entrujar.

Lucro, (L. lucru), m. Utilidade; ganho; proveito; produto livre de despesas.

Lucrar, (l lucrare por lucrari, t. e int. Ganhar; aproveitar; ter interesse; tirar lucros” (Dic. Complem. de Augusto Moreno)

Logro, s. m. (lat. lucru). Acto ou efeito de lograr. Ardil, fraude, enredo Desus. Lucro, interesse. Pop. Pulha, partida ou peça de Entrudo.

Lograr, v., t (lat. lucrari) Gozar, fruir, desfrutar, possuir […]. Aproveitar, tirar lucro de. Enganar com astúcia ou por gracejo; burlar […]; conseguir; alcançar […]; – V. r. Desus. Aproveitar-se, gozar. Fig. Aumentar-se.

Lucro, s. m. (lat. lucru). Ganho, benefício […]; utilidade, vantagem.

Lucrar, v. t.(lat. lucrare por lucrari). V. i. Ganhar, tirar lucros, vantagens de alguma coisa. V. t. P. us. Gozar” (Lello Prático Ilustrado)

Notas
1. Para justificar a minha resposta imediata, que  aqui confirmo e aprofundo, transcrevi as anteriores três entradas de dois dicionários que muito prezo. Note-se que, na entrada logro do Lello, a abreviatura ‘Desus.’ que quer dizer ‘desusado’, ‘caído em desuso’, serve para nos lembrar que, com esse sentido (sinónimo de ‘interesse’) deixou de se usar. Lembro que o Lello citado é edição de 1981, e o A. Moreno é de 1936.

2. Era bom que os supervisores (os responsáveis pela linguística da coisa), em qualquer ‘Jogo da Língua’,  fossem gente competente, competência que se pode revelar logo na pergunta a fazer, no enunciado da questão. Competentes em gramática, em linguística, na semântica, na evolução semântica, na etimologia, na língua-mãe da nossa, etc. Até já fui tentado a pensar que, às vezes, esses ‘supervisores’ fogem do latim, da etimologia, mesmo da semântica, como o diabo da cruz…

3. Isto está muito longe de acontecer, por muito que o/a responsável seja anunciado/a como professor/a, supomos nós que de nível universitário… Convido os meus deparantes de acaso ou adrede visitantes a pesquisarem todas as postagens deste blogue que abordem questões do ‘Jogo da Língua’. Experimentem.

4. Gosto bastante do Malato, pela cultura geral que revela, com segurança, e o cuidado na preparação dos programas. E, só por isso, às vezes vejo os seus programas. E até desconfio que, se calhar, vai concordar comigo, embora não o ‘possa’ revelar ao seu supervisor linguista…

5. Concluindo. Lucro sinónimo de logro? Parece que o terá sido em algum tempo, mas, na linha diacrónica da língua, poderemos dizer que a evolução semântica levou a que deixasse de o ser.., o que não se terá dado com o par verbal lograr/lucrar.