“Mafia ou Máfia?” (Carta ao DN, 3/11/2009, p. 11). O leitor José Correia de Almeida “opta por Mafia dizendo que o título do DN ‘Mafia mata em Gomorra’ está correcto.”
Eu, também leitor do DN, opto por mafia, como aprendi, como sempre tenho usado. Passo a justificar.
Desde que comecei o meu processo de aprendizagem da língua portuguesa, ou seja, desde a barriga da minha mãe e, depois, por aí fora, em todo o meu percurso escolar, desde a primária, na década de 30 até meados da década de 50 – primária, secundário, superior e por aí fora na continuação da aprendizagem da Língua Portuguesa que foi a minha vida – de ensino/aprendizagem. objecto/objectivo que só acabará quando acabar o sujeito que sou eu – sempre aprendi a dizer/escrever mafia, assim, palavra grave sem qualquer acento gráfico. Nunca ouvi/li ninguém no meio escolar, no tempo de discente ou no tempo de docente, dizer/escrever máfia. E foi há poucos anos, acho que já depois de me ter aposentado como professor, ou pouco antes, que comecei a deparar, com alguma insistência, com a grafia e a pronúncia “Máfia”, palavra esdrúxula, com acento, pois.
Depois de ler esta carta no DN, lembrei-me de escrever este texto para postagem neste blogue e dei-me ao trabalho de consultar os dicionários e enciclopédias que tenho aqui à volta da minha mesa de trabalho. Passo a referir todos estes meus “colaboradores” com a respectiva “opinião”. Por ordem da idade, o que não me parece de somenos importância:
Complementar de Augusto Moreno, 1936 – não regista.
Grande Enciclop. Portuguesa e Brasileira (reprodução fac-similada da edição inicial anterior à reforma ortográfica de 1945) – regista Mafia, palavra grave sem acento gráfico.
Enciclopédia VERBO, Edição Século XXI – regista Mafia, palavra grave.
Dicionário da Língua Portuguesa (7 volumes, Sociedade da Língua Portuguesa, coorden. de José Pedro Machado, 1958) – não regista. Assim como, do mesmo autor, o
Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Livros Horizonte, 3ª edição, 1977) – não regista. Mas, ainda do mesmo autor, o
Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa – regista Máfia, tal como o ainda seu
Grande Vocabulário da da Língua Portuguesa (para Sociedade de Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, 2001) – regista máfia.
Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, de Morais Silva (5 volumes, Horizonte/Confluência, 8ª edição, 1994) – não regista.
Lello Universal (2 volumes, 1973) – regista Mafia, palavra grave sem qualquer acento gráfico. De notar que, neste dicionário, a palavra Mafia é seguida de um alfa entre parênteses, preocupação indicativa da pronúncia.
Dicionário Prático Ilustrado Lello, edição de 1981 – regista mafia, palavra grave sem qualquer acento gráfico. Como estes dicionários Lello são traduzidos e adaptados dos franceses Larousse, teve decerto alguma influência a correspondente palavra usada na língua francesa e registada nesses dicionários : “Mafia ou Maffia” [sic].
Enciclopédia Diário de Notícias/Dicionário Enciclopédico (distribuído em fascículos de 21.04.1996 a 14.09.1997) – regista mafia, palavra grave sem qualquer acento gráfico.
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa (Verbo, 2001) – regista máfia , com a indicação da pronúncia em caracteres do alfabeto fonético.
Dicionário Aurélio Século XXI – regista máfia, palavra esdrúxula
Dicionário HOUAÏSS da Língua Portuguesa (Círculo de Leitores, 2002) – regista máfia, palavra esdrúxula.
Dicionário da Língua Portuguesa (Porto Editora, 2003) – regista máfia, indicando a origem: (Do dialecto siciliano mafia, “bazófia”).
Petit Robert e Petit Larousse – registam: ‘mafia ou maffia’ (sic)
Considerações e conclusões sobre mafia / máfia:
1. Diz o senhor José Correia de Almeida, autor da carta, que “opta por Mafia porque a palavra é grave e assim a ‘Mafia mata em Gomorra’ está correcto” (DN 30 Outubro, p. 23). E diz ainda: “A grafia Máfia (…) já por muitos é admitida” (DN, mesma edição, p.7, rodapé). Além do DN, que também opta por mafia, o que não me surpreende, pois tenho o DN em boa consideração ortográfica e linguística, há pelo menos dois leitores que fazem a mesma opção, a saber: mafia, palavra grave.
2. Pelo meu testemunho “autobiográfico” (ver acima) relativo à palavra mafia/máfia, acho que podemos concluir que a palavra entrou como neologismo/italianismo na língua portuguesa provavelmente na primeira metade, adiantada, do século XX , como mafia, palavra grave, sem qualquer acento gráfico.
3. Mas, certamente, porque de ‘mafia’ se tratava, ela entrou, muito a medo, (sabe-se lá de que ‘mafia’…), porquanto dicionários importantes da nossa língua pura e simplesmente ignoraram a palavra, que só começa a aparecer, em alguns dicionários apenas, já na segunda metade do século. Esta afirmação, além do meu testemunho pessoal, ganha muita força ao sabermos que as enciclopédias consultadas e dicionários da importância dos “LELLO” assim a registam.
4. Com medo ou sem medo, o neologismo foi usado entre nós, sobretudo nos meios académicos ou escolarizados, no seu registo de palavra grave, até porque, originário do dialecto siciliano, por lá devia e deverá ser usado com a pronúncia siciliana “mafia”, que nos franceses, segundo o testemunho do Petit Larousse e do Petit Robert, também por mim consultados, é “mafia ou maffia”, com a pronúncia assim indicada: [mafja].
5. Também o Prontuário Ortográfico e guia da língua portuguesa (Notícias, 47ª edição) se terá entretanto deixado contaminar, optando por máfia (na minha edição). Gostaria eu de saber como está a palavra registada nas primeiras edições…
6. O facto de os dois dicionários brasileiros mais conhecidos e com a autoridade que lhes advém do prestígio dos seus autores registarem máfia, não menoriza o que antes fica dito, pois é sabido que a Língua Portuguesa, no Brasil, tem seguido o seu caminho, ignorando qualquer acordo com a parte lusitana do universo falante do Português.
7. O próprio facto de o meu computador se encarregar de acentuar a palavra, transformando a que eu escrevo grave em esdrúxula, substituindo, sem minha ordem, o “a” não acentuado pelo “á” acentuado, é mais uma prova de que a “máfia” está a ser imposta, pelos meios informáticos ao seu alcance, como esse tal acordo ortográfico que também, absurdamente, nos querem impor, coûte que coûte… Critérios mercantilistas ou neocolonialistas ao invés?… Não é?
8. Mas o autor da carta começa por dizer que “há que uniformizar em termos de redacção/escrita [quereria ele dizer em termos de ortografia]”. Pois é. Enquanto os falantes do francês têm como garante a Académie Française, e os falantes do castelhano a Academia Real, os falantes do português têm uma coisa que se chama Academia das Ciências de Lisboa que mandou elaborar uma coisa a que chamaram Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, onde essa nossa língua é tão maltratada. E assim anda ela sem rei nem roque por esse mundo lusófono, enquanto o “brasileiro” [le brésilien, dizem os franceses] se vai orientando, por Lá, pela Academia Brasileira de Letras. Por Lá e… por Cá…