Falar com maiúsculas?!

Era na madrugada de segunda para terça (19/01/09). Não retive o nome do programa da Antena 1, em que o convidado era Válter Hugo Mãe (perdão, válter hugo mãe, ou se calhar melhor: valter hugo mãe). Às tantas, dou com os meus ouvidos a ouvirem, da boca do convidado, esta bárbara sentença: “Não se fala com maiúsculas”, acho que para justificar a sua escrita só com minúsculas, a começar pelo próprio nome, e outras barbaridades mais prosódicas, que têm a ver com a pontuação, mais que saramaguiana.

Com que então, não se fala com maiúsculas? O que quererá dizer que se fala, sim, mas com minúsculas. Isto para justificar, pois, a sua escrita só com minúsculas, “desnormada”, não só no formato das letras – minúscula/maiúscula – como também no seu uso “descriterioso” dos sinais diacríticos. Na poesia, eu até estou em aceitar. Porque, se há o verso e os espaços, não fazem muita falta a maiúscula e os diacríticos, à excepção, está claro, dos acentos (se o senhor Hugo se lembra de começar a escrever sem os acentos da norma, não deixaria de estar  a ser coerente com o seu estilo subversivo, caótico, anárquico, de inventor, para a escrita, de excentricidades gratuitas de brincalhão-mais-que-epígono de Saramago).

O que me admira um pouco (ou talvez muito) é a demagogia crítica em que se deixam embarcar Jotas Eles e quejandos seus apaniguados…

Mas, voltando à vaca fria das maiúsculas, conviria perguntar, ao senhor Hugo (perdão, senhor hugo),  ele que, pelos vistos só falará com minúsculas…,  se ele não sabia (um inventor de tal facúndia devia saber) – se ele não sabe que não se fala com letras – maiúsculas ou minúsculas. Fala-se com sons, com fonemas, que não têm nada que ser minúsculos ou maiúsculos. Isso tem a ver, sim,  com o escrito, com o gráfico, com  os grafemas, com as letras.  E, para essas, há normas que, em texto discursivo, são de obrigação colectiva. Vejam só: se cada escritor resolvesse agora usar na sua escrita o seu sistema diacrítico privado, o que é que teríamos nas livrarias? Uma Babel da escrita? Uma bagunça “desuniformizada”?

Não seria caso de se propor ao senhor hugo que, dada a expansão dos seus livros pelo mundo, nomeadamente “na Líbia e na Tunísia”, como ele disse no tal programa, – propor-lhe que fomente a invenção de um teclado que permita, por exemplo, escrever as letras de pernas para o ar?…

Queria dizer ao Senhor Hugo Mãe (perdão, senhor hugo mãe) que não auguro futuro à sua brincadeira, incluindo a sua esquisita diacrítica.

Mas também não fique por dizer que a excentricidade, a extravagância, o exibicionismo da escrita anárquica também deve muito à guarida que lhe é dada na comunicação social, e ainda mais na comunicação especificamente literária em jornais como o JL. Guarida “literária”? “Pedagógica”? Ou simplesmente demagógica?

Acentuação de palavras agudas

Para não haver confusões em relação ao anterior texto ‘Peru sem acento’, peguei numa boa gramática e, com a devida vénia, decidi transcrever aqui tudo o que nela se diz sobre acentuação de palavras agudas ou oxítonas. Só é pena esta boa gramática, como em geral todas elas, nem sequer referir a legislação em que se baseia, os tais decretos da reforma de 45. Antes de mais nada, é bom recordar que a maior parte das palavras agudas não se acentua graficamente. Aí vão, pois, os casos em que se acentuam:

«Acentuam-se graficamente as palavras agudas nos seguintes casos:
1. Quando terminam em ‘a’, ‘e’ e ‘o’ abertos ou médios,ou vogal nasal, seguidos ou não de ‘s’:

vogais abertas: dá. dás, café(s), avó(s)
vogais médias: lê, lês, revês avôs
vogais nasais: irmã(s), maçã(s)
ditongos nasais: irmão(s), mãe(s), põe, pões

Nota 1: incluem-se nesta regra as formas verbais em que desaparece a terminação ‘r’, ‘s’, e ‘z’ por se lhes juntar o pronome lo, la, los, las: aceitá-lo (aceitar+lo), sabê-las (saber+las), supô-lo (supor+lo ou supôs-lo), fê-los (fez+los), fá-las (faz-las), etc.
Nota 2
: Nos derivados de palavras graves com terminação nasal, mantém-se o til na derivação: maçãzinha, irmãozito, vãmente, etc

2. Quando terminam em ‘i’ ou ‘u’ precedidos de outra vogal com que não formam ditongo, seguidos ou não de ‘s’: aí, saí, saís, país, concluí, concluís*

Nota 1: Não se acentuam quando esse ‘i’ ou ‘u’ forma ditongo: saiu, concluiu, anuiu, pauis
Nota 2:
Não se acentuam quando seguidos de consoante que não seja ‘s’: ruim, sair, raiz, juiz, paul [posso acrescentar: Raul, Abiul, Vermoil, etc.]*
Nota 3
: Repare-se na diferença entre aí e ai; saí e sai; caí e cai

3. Quando terminam nos ditongos abertos éi, éu, ói, seguidos ou não de ‘s’:

papéis, chapéu(s), lençóis, constrói, constróis

Nota: Estes ditongos não se acentuam quando são fechados: saberei, plebeu(s), boi(s), depois

4. Quando terminam em ‘em’ ou ‘ens’ e têm mais do que uma sílaba: alguém, porém, Santarém, armazém, armazéns, mantém, manténs

Nota: Quando têm uma única sílaba não se acentuam: bem, cem, tem, tens»

(Gramática do Português Contemporâneo, José Manuel de Castro Pinto / Maria do Céu Vieira Lopes, Plátano Editora, 6ª edição 2005)

__________

* Os dois pontos marcados por mim com asterisco são os casos que podem trazer alguma confusão e levar os falantes desprecavidos a escrever com acento gráfico palavras agudas como: peru(s), rubi(s), Raul, paul, Abiul, etc. Como se vê, o caso de peru nem é mencionado, porque simplesmente não se enquadra nos casos de palavras agudas que se acentuam, o que significa que não leva mesmo acento gráfico, como de resto a maior parte das palavras agudas.

Peru sem acento: é assim porque sim?

Peru sem acento, pois claro. Mas, antes de mais nada, falar em peru, pelo Natal, é trazer à lembrança aquele peru recheado da tia Mindinha (tia dos meus filhos, claro). Aquilo era comer e chorar por mais. Coitada, já não volta a fazer, mas a lembrança, para todos nós, fica.

Por falar em peru, era uma vez mais no Jogo da Língua, Antena 1 (em 23/12/09). A questão era: peru leva ou não leva acento gráfico? Resposta repentina do concorrente: leva acento, sem dúvida. – Mas não tem dúvida mesmo? – Tenho a certeza absoluta, leva acento. – Bom, vamos então ver o que nos diz a senhora doutora, ela é que sabe. – Mas eu vou ao Dicionário da Academia e não sei mais quê, porque leva acento sim senhora!

Vem a senhora doutora e diz: “Peru não leva acento. É uma palavra aguda. É nessa vogal que recai o acento tónico mas não leva acento gráfico”. E pronto.

E desta vez eu tenho de protestar mesmo. Duas coisas que se resumem no argumento magistral:  na sua forma magistral  mesmo – Magister dixit, é assim porque sim, porque eu digo – e  na sua outra forma de aceitação reverentemente submissa – a senhora doutora é que sabe. Vamos à primeira.

Então em qualquer um Jogo da Língua, numa rádio pública, acham que uma resposta assim é o bastante? Não tinha a senhora doutora a obrigação de explicar aos ouvintes porque é que peru não leva acento? Que não é porque a senhora doutora diz, mas sim porque – devia a senhora doutora dizê-lo – assim está estabelecido legalmente no decreto 35.228 de 8 de Dezembro de 1945, decorrente da reforma ortográfica que resultou da Convenção Ortográfica Luso-Brasileira – que os Brasileiros mandaram às malvas… -, e que ainda hoje é vigente. E, se quisesse, não lhe ficava mal acrescentar: até que alguém nos consiga impor um desacordo malfadado que ronda por aí as muralhas da nossa ortografia – digo eu. Vão a uma boa biblioteca, senhoras e senhores. Requisitem para leitura o Diário da República que publicou o decreto 35.228 de 45 , 8 de Dezembro,  e seus anexos, e lá verão a razão por que peru, como a maior parte das palavras agudas, não leva acento. Qualquer boa gramática não faz mais do que transcrever; mas também devia indicar a fonte legislativa. Não vamos aqui formular as regras, que deparante de acaso ou adrede visitante pode ler na postagem seguinte. Não é, pois, porque algum magister ou magistra o diz, mas sim porque vem na tal legislação, depois completada pelo Vocabulário de Rebelo Gonçalves, que o elaborou por delegação do Governo para o efeito , e que José Pedro Machado continuou no Grande Vocabulário da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores.

Ah, só falta dizer que, além deste decreto, foi publicado em 1973 o decreto-lei nº 32/73 de 6 de Fevereiro, que estipula no seu artigo único, a “eliminação dos acentos circunflexos e dos acentos graves com que se assinalam as sílabas subtónicas dos vocábulos derivados com o sufixo ‘mente’ e com os sufixos iniciados por ‘z’.”

E, simplesmente, é por efeito desta legislação que peru se escreve sem acento, e que, enquanto não for revogada a legislação desta reforma, peru não pode escrever-se de outra maneira, mesmo que algum dicionário se atrevesse a registar o contrário, o que, aliás, não acontece com o Dicionário da Academia de Lisboa, contrariamente ao que  sugeriu o concorrente. Não acontece com peru, mas acontece com outras coisas que dizem mal do estatuto de que se arroga o tal dicionário (Cf. algumas rubricas dos livros Tento na Língua!: 116,133, 149, 150, 180, 207, e 223).

E não quero acabar este texto, que já vai longo, sem dizer mais qualquer coisinha sobre o argumento magistral passivo. É que não ficava nada mal à senhora locutora Filomena Crespo, pivô do programa, não exercer tanto a submissão magistral, até porque se trata, sem qualquer dúvida para mim, já o escrevi uma vez, da melhor locutora que me é dado ouvir em Antena 1 – voz, locução, inteligente moldação, modulação e domínio da língua – a quem deviam ter ensinado estas coisas, mesmo já no secundário, quanto mais no superior. (Ver a seguir o post “Acentuação de palavras agudas”.)

A “mafia” que eu aprendi

“Mafia ou Máfia?” (Carta ao DN, 3/11/2009, p. 11). O leitor José Correia de Almeida “opta por Mafia dizendo que o título do DN ‘Mafia mata em Gomorra’ está correcto.”

Eu, também leitor do DN, opto por mafia, como aprendi, como sempre tenho usado. Passo a justificar.

Desde que comecei o meu processo de aprendizagem da língua portuguesa, ou seja, desde a barriga da minha mãe e, depois, por aí fora, em todo o meu percurso escolar, desde a primária, na década de 30 até meados da década de 50 – primária, secundário, superior e por aí fora na continuação da aprendizagem da Língua Portuguesa que foi a minha vida – de ensino/aprendizagem. objecto/objectivo que só acabará quando acabar o sujeito que sou eu – sempre aprendi a dizer/escrever mafia, assim, palavra grave sem qualquer acento gráfico. Nunca ouvi/li ninguém no meio escolar, no tempo de discente ou no tempo de docente, dizer/escrever máfia. E foi há poucos anos, acho que já depois de me ter aposentado como professor, ou pouco antes, que comecei a deparar, com alguma insistência, com a grafia e a pronúncia “Máfia”, palavra esdrúxula, com acento, pois.

Depois de ler esta carta no DN, lembrei-me de escrever este texto para postagem neste blogue e dei-me ao trabalho de consultar os dicionários e enciclopédias que tenho aqui à volta da minha mesa de trabalho. Passo a referir todos estes meus “colaboradores” com a respectiva “opinião”. Por ordem da idade, o que não me parece de somenos importância:

Complementar de Augusto Moreno, 1936 – não regista.

Grande Enciclop. Portuguesa e Brasileira (reprodução fac-similada da edição inicial anterior à reforma ortográfica de 1945) – regista Mafia, palavra grave sem acento gráfico.

Enciclopédia VERBO, Edição Século XXI – regista Mafia, palavra grave.

Dicionário da Língua Portuguesa (7 volumes, Sociedade da Língua Portuguesa, coorden. de José Pedro Machado, 1958) – não regista. Assim como, do mesmo autor, o

Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Livros Horizonte, 3ª edição, 1977) – não regista. Mas, ainda do mesmo autor, o

Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesaregista Máfia, tal como o ainda seu

Grande Vocabulário da da Língua Portuguesa (para Sociedade de Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, 2001) – regista máfia.

Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, de Morais Silva (5 volumes, Horizonte/Confluência, 8ª edição, 1994) – não regista.

Lello Universal (2 volumes, 1973) – regista Mafia, palavra grave sem qualquer acento gráfico. De notar que, neste dicionário, a palavra Mafia é seguida de um alfa entre parênteses, preocupação indicativa da pronúncia.

Dicionário Prático Ilustrado Lello, edição de 1981 – regista mafia, palavra grave sem qualquer acento gráfico. Como estes dicionários Lello são traduzidos e adaptados dos franceses Larousse, teve decerto alguma influência a correspondente palavra usada na língua francesa e registada nesses dicionários : “Mafia ou Maffia” [sic].

Enciclopédia Diário de Notícias/Dicionário Enciclopédico (distribuído em fascículos de 21.04.1996 a 14.09.1997) – regista mafia, palavra grave sem qualquer acento gráfico.

Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa (Verbo, 2001) – regista máfia , com a indicação da pronúncia em caracteres do alfabeto fonético.

Dicionário Aurélio Século XXI – regista máfia, palavra esdrúxula

Dicionário HOUAÏSS da Língua Portuguesa (Círculo de Leitores, 2002) – regista máfia, palavra esdrúxula.

Dicionário da Língua Portuguesa (Porto Editora, 2003) – regista máfia, indicando a origem: (Do dialecto siciliano mafia, “bazófia”).

Petit Robert e Petit Larousse – registam: ‘mafia ou maffia’ (sic)

Considerações e conclusões sobre mafia / máfia:

1. Diz o senhor José Correia de Almeida, autor da carta, que “opta por Mafia porque a palavra é grave e assim a ‘Mafia mata em Gomorra’ está correcto” (DN 30 Outubro, p. 23). E diz ainda: “A grafia Máfia (…) já por muitos é admitida” (DN, mesma edição, p.7, rodapé).  Além do DN, que também opta por mafia, o que não me surpreende, pois tenho o DN em boa consideração ortográfica e linguística, há pelo menos dois leitores que fazem a mesma opção, a saber: mafia, palavra grave.

2. Pelo meu testemunho “autobiográfico” (ver acima) relativo à palavra mafia/máfia, acho que podemos  concluir que a palavra entrou como neologismo/italianismo na língua portuguesa provavelmente na primeira metade, adiantada, do século XX , como mafia, palavra grave, sem qualquer acento gráfico.

3. Mas, certamente, porque de ‘mafia’ se tratava, ela entrou, muito a medo, (sabe-se lá de que ‘mafia’…), porquanto dicionários importantes da nossa língua pura e simplesmente ignoraram a palavra, que só começa a aparecer, em alguns dicionários apenas, já na segunda metade do século. Esta afirmação, além do meu testemunho pessoal, ganha muita força ao sabermos que as enciclopédias consultadas e dicionários da importância dos “LELLO” assim a registam.

4. Com medo ou sem medo, o neologismo foi usado entre nós, sobretudo nos meios académicos ou escolarizados, no seu registo de palavra grave, até porque, originário do dialecto siciliano, por lá devia e deverá ser usado com a pronúncia siciliana “mafia”, que nos franceses, segundo o testemunho do Petit Larousse e do Petit Robert, também por mim consultados, é “mafia ou maffia”, com a pronúncia assim indicada: [mafja].

5. Também o Prontuário Ortográfico e guia da língua portuguesa (Notícias, 47ª edição) se terá entretanto deixado contaminar, optando por máfia (na minha edição). Gostaria eu de saber como está a palavra registada nas primeiras edições…

6. O facto de os dois dicionários brasileiros mais conhecidos e com a autoridade que lhes advém do prestígio dos seus autores registarem máfia, não menoriza o que antes fica dito, pois é sabido que a Língua Portuguesa, no Brasil, tem seguido o seu caminho, ignorando qualquer acordo com a parte lusitana do universo falante do Português.

7. O próprio facto de o meu computador se encarregar de acentuar a palavra, transformando a que eu escrevo grave em esdrúxula, substituindo, sem minha ordem, o “a” não acentuado pelo “á” acentuado, é mais uma prova de que a “máfia” está a ser imposta, pelos meios informáticos ao seu alcance, como esse tal acordo ortográfico que também, absurdamente,  nos querem impor, coûte que coûte… Critérios mercantilistas ou neocolonialistas ao invés?… Não é?

8. Mas o autor da carta começa por dizer que “há que uniformizar em termos de redacção/escrita [quereria ele dizer em termos de ortografia]”. Pois é. Enquanto os falantes do francês têm como garante a Académie Française, e os falantes do castelhano a Academia Real, os falantes do português têm uma coisa que se chama Academia das Ciências de Lisboa que mandou elaborar uma coisa a que chamaram Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, onde essa nossa língua é tão maltratada. E assim anda ela sem rei nem roque por esse mundo lusófono, enquanto o “brasileiro” [le brésilien, dizem os franceses] se vai orientando, por Lá, pela Academia Brasileira de Letras. Por Lá e… por Cá…

Cateteres

Ao ler nos jornais a palavra cateteres sem acento (pensava eu que devia ter acento agudo na penúltima sílaba, pois se trataria de palavra esdrúxula), dei-me ao trabalho de, na dúvida, certificar-me. E cheguei à conclusão de que os jornais têm razão: a palavra cateteres é grave, a sua sílaba tónica é a penúltima – ter – e, como tal, se deverá ler cateteres. No singular é cateter, sem qualquer acento e portanto aguda. Todos os dicionários que consultei são desta opinião, que a etimologia reforça: vem do grego kathetér (= sonda).

Sabiam a letra decór (sic)”?!…

Quando se trata de escrever a locução adverbial de modo de cor (é assim que se deve escrever), a muitos falantes se lhes depara esta dificuldade ortográfica: decor, decór ou de cor? Esclareça-se, pois, a coisa de uma vez por todas.

A locução em causa é constituída pelo nome substantivo antigo cor, precedido da preposição de, como tantas outras locuções: de cor, pois. O nome cor (= coração) é precisamente o nominativo do substantivo latino – cor, cordis – que significa ‘coração’ e que, certamente, foi na nossa língua usado com esse significado antes da forma ‘coração’, adoptada mais tarde e que tem como étimo a palavra coratione do latim popular. De notar que este nome – cor – só persiste na referida locução e, como elemento de formação, em decorar (= aprender de cor); mas não em decorar (= arranjar, enfeitar) que vem directamente do latino decorare que tem a ver com o nome decus, decoris (= decoro, enfeite).

Atenção à palavra homógrafa cor ( ‘o’ fechado mas também sem acento gráfico), singular de cores, substantivo que deriva do latino colore.

* in “O hino anti-Sócrates dançado no Parlamento” (DN 25.04.09, p. 15).

Sinais diacríticos e pontuação

A propósito, talvez conviesse lembrar… De dicionários e enciclopédias, tirámos o registo de conceitos.

Diacrítico, adj. (gr. diakritikos). Gram.  Designativo de sinais gráficos destinados a distinguir a modulação das vogais: a vírgula, o acento agudo, o ponto, etc., são sinais diacríticos. || Med. Diz-se dos sinais com que uma doença se distingue de outra.

“Os sinais diacríticos não representam sons, mas auxiliam a representação dos fonemas vocabulares. Uns são notações ortográficas ou léxicas: acento agudo, acento grave, cedilha, etc. […]. Outros são sinais gráficos ou notações que têm por fim discriminar os diversos elementos sintácticos da frase, com vista à clareza, às pausas e modulações próprias na leitura e denominam-se sinais de pontuação: ponto final (.), vírgula (,), ponto e vírgula(,), dois pontos (:), ponto de interrogação (?), ponto de admiração ou de exclamação (!) e reticências (…). São também de uso frequente os sinais gráficos: aspas (“), traço de união ou hífen (-), travessão ( – ), asterisco ( *), parêntese ( () ), parágrafo (§) e chaves ( { }).

“Nos manuscritos romanos não se usava pontuação (P.), que apareceu só com as escritas cursivas. Segundo S.to Isidoro, o ponto ao cimo da regra indicava pausa final; ao meio, pausa média; e ao fundo, pausa breve. Com a divulgação das escritas minúsculas, tornou-se difícil distinguir a posição do ponto, preferindo-se combinações deste com a vírgula. Para facilitar a leitura e evitar equívocos, Alcuíno aconselhou o uso de sinais de P. nos manuscritos carolinos. Não havia, porém, sistema fixo e o número e uso de sinais de P. variou com o tempo e lugares, sendo, muitas vezes, arbitários. A finalidade da P. nos textos antigos e medievais era realçar os elementos rítmicos da frase, enquanto nos tempos modernos se prefere distinguir os elementos lógicos e gramaticais, além de marcar as pausas a fazer na leitura e recitação e as inflexões e modulações da voz que tornem mais expressivos os pensamentos, sentimentos e figuras contidos no texto. Estão em uso os seguintes sinais: […]”
([Prof. Doutor] A[velino]. de Jesus da Costa, in Encicl. Verbo Luso-Brasileira da Cultura, Edição  Século XXI)

“A teoria da pontuação é vária, e no seu uso não há uniformidade entre os nossos escritores. Uns têm pontuação mais forte e abundante, outros mais frouxa e apoucada” (Carlos Pereira, in Gramática Expositiva, Curso Superior, p. 333, cit. In G.E.P. e B.)  “A pontuação, desordenada durante os primeiros tempos da tipografia, foi quase regularizada por Aldo Manúcio, ao findar do séc. XV. ”
(Gr.  Enc. Port. e Bras.)

Escritores, epígonos, prémios literários e marketing

Num dia destes, o DN publicou uma longa entrevista com José Rodrigues dos Santos, a pretexto do seu último livro O Sétimo Selo. E, a seguir, o jornal desenvolveu uma operação de marketing que foi até oferecer livros desse autor, grátis, apenas tendo de telefonar quem quisesse habilitar-se… Dias depois, outra grande entrevista com Rodrigo Guedes de Carvalho, a pretexto também do seu último romance O Canário. Depois foi a vez do escritor Miguel de Sousa Tavares, também a pretexto do seu último romance Rio das Flores.

No DN de 28/Out./07, domingo, a entrevista, de quatro páginas do jornal a começar na segunda, calhou ao Nobel José Saramago, onde este, além de coisas muito interessantes da sua vida literária, diz também, a propósito de Rodrigues dos Santos e Miguel Sousa Tavares:

“Bem, essa discussão sobre o que deveria ser ou poderia ser uma literatura maior também nos levaria longe. Mas como eu não li realmente nenhum deles, não posso ser efectivo juiz nesta matéria […] O que digo é que a forma de lançar os autores, estes autores, obedece a um marketing implacável […] Como não os li, não posso confirmá-lo, mas não tenho dúvidas de que se possam encontrar ali méritos literários. Aquilo de que eu não gosto, e tenho direito a isso, é a operação de marketing, que essa não tem nada a ver com literatura”.

Nisto, eu tenho de estar com Saramago. Não é pelo marketing que se me depara no jornal que todos os dias leio que vou a correr (se calhar nem mesmo que fosse devagar…) comprar e ler os livros assim publicitados. Mas tenho de acrescentar que também não é por alguém ter ganho o Nobel que vou a correr ler alguma coisa dele…Nem mesmo Saramago. Antes que ele fosse Nobel, eu já o tinha lido o bastante para o admirar como grande criador literário. Mas tenho de confessar que os últimos não os li.  E, em boa verdade, não me apetece…E por falar em marketing, gostaria eu de perguntar se não é o mesmo marketing, mais ou menos, aquele que o Nobel está usando com estas entrevistas e outras?

E, já agora que falamos de escritores, porque não falar também de epígonos e prémios literários? É que tenho aqui uma notícia muito interessante, já com algum tempo, que tem como título “Valter Hugo Mãe ganha Prémio Saramago” com o subtítulo ” ‘o remorso de baltazar serapião’ (orbs) foi escolhido por unanimidade“. E, pergunto eu, escolhido por quem? Ora, escolhido por um júri integrando, não sei se como presidente, Pilar del Rio, mulher de José Saramago. E da obra premiada diz Saramago: “Este livro é um tsunami.  Um tsunami linguístico, estilístico, semântico, sintáctico. Um tsunami no sentido do impacto, da força”. (Ver contracapa de orbs ). Sim, com o tsunami, também eu concordo. Mas no sentido mais destrutivo da palavra…E, pelo que me tinham dito, fiquei com a impressão de que ele baniu do seu estilo, digamos in limine, as letras maiúsculas. E quanto à pontuação? Nada como ver com os meus olhos. Adquiri, pois, os dois livros de ficção de valter hugo mãe (escrevo com minúscula, não vá o autor ofender-se…) e verifiquei, no remorso de baltazar, que há por ali muita imitação do Patrono, a começar pela ‘despontuação’… (Cf. rubricas 321-324). Mas há uma inovação: banir por completo as maiúsculas, começando logo pelo seu nome, continuando em tudo o que é nome próprio. Inovação só pela inovação, parece-me… Não nego que haja talento, no que respeita à inventio, ao discurso narrativo, às personagens e acção. Mas, não é que o serapião me lembra o pícaro Malhadinhas de Aquilino?… No segundo livro – o apocalipse dos trabalhadores –  repetem-se as ‘inovações’ do primeiro.. Na esteira do Patrono, ousou levar as coisas mais longe, como de resto costuma acontecer em casos destes. A pontuação de hugo mãe não é um auxiliar do leitor, para melhor perceber a sintaxe: ela é um constante e grosseiro ruído a dificultar (e de que maneira!) a nossa leitura! O ponto final passou a ter, também, a função do ponto de interrogação, que pura e simplesmente foi banido (Lembrar-me eu dos dois de que nuestros hermanos não prescindem na frase interrogativa: um de pé para o ar no princípio, outro de pé para o chão no fim…); dois pontos, ponto-e-vírgula e exclamação não existem…

Não será ele então um epígono do próprio Saramago? De resto, logo o “baltazar” do título  já me tinha remetido um pouco para isso… Por este andar, talvez seja caso para perguntar: e se um dia algum escritor se lembra de construir um tipo de discurso com as letras de pernas para o ar?… Ou a escrita com as linhas da direita para a esquerda, à maneira de algumas línguas semiticas?… Será isso criatividade,  inovação por inovação, nem que seja um grandessíssimo disparate que, estou certo, ninguém vai tomar a sério? Até nos apetece dizer: Ó grande Garrett, ó grande Eça, ó grande Brandão, ó grande Pessoa, ó grande Aquilino, ó Agustina, ó Mário de Carvalho, ó tantos e tantas outros e outras, mortos ou vivos, valei-nos!

Acentos a mais, acentos a menos

Nota prévia – No nº 928 d’O Correio de Pombal, p. 4, foi publicado o texto, com o mesmo título – Acentos a mais, acentos a menos – em circunstâncias baralhantes: atribuída a autoria a um tal António Oliveira, e acrescentados dois parágrafos a que o verdadeiro autor, António Marques, não reconhece paternidade. Dado que, se alguma correcção houve, não teve a visibilidade que a baralhada merecia, aqui se dá conta, sem mais trapalhadas, do texto integral, corrigindo-se, além disso, um lapsus plumae do original: é que Vénus e lápis não se acentuam por serem palavras graves terminadas em ‘s’, mas sim por serem palavras graves terminadas em ‘i’ ou ‘u’ seguido ou não de ‘s’. Aí vai, pois o texto, devida e totalmente corrigido:

Estamos fartos de ver por aí, por esses jornais além (e revistas), acentos a mais e acentos a menos. Digo fartos ‘de ver’, porque na fala, no oral, eles não se mostram. Ai se mostrassem… teríamos com certeza as cataratas agravadas… Mas há quem insista e até quem diga que é ser picuinhas estarmos para aqui a ligar tanta importância aos acentos. Acentos gráficos, pois claro, ou seja acentos que se vêem na escrita, acentos que se escrevem. Acento gráfico para se distinguir, por exemplo, de acento tónico, que pode não ser gráfico, não ser escrito. E antes de mais, fique-se sabendo duma vez por todas que, nas palavras esdrúxulas, o acento tónico representa-se sempre graficamente, ou seja, todas as palavras esdrúxulas, todas sem excepção, levam acento gráfico: agudo se a vogal tónica é aberta, circunflexo se é fechada: tónica, câmara, etc. Posto isto como introdução, vamos lá então aos acentos a mais e a menos. Em palavras graves ou agudas, claro, que só excepcionalmente se acentuam, e aí é que está a dificuldade..

Devo dizer que este texto foi-me inspirado, há já bastante tempo, mas de forma especial e insistente aquando da célebre doença recente de Fidel, por ter sido substituído pelo irmão Raul. Vejam bem: Raul (sem acento) e não Raúl (como parece que se escreve em espanhol). Mas como a notícia foi muito repetida, mesmo em primeira página, daí termos visto, em tudo quanto é órgão escrito de comunicação, uma sementeira de acentos gráficos onde nenhum acento gráfico devia ser visto, pois Raul em português não leva acento. No entanto, em jornais e revistas era (e ainda é…) Raúl para a esquerda, Raúl para a direita, Raúl em tudo quanto era sítio da dita notícia. E não! Devia lá estar escrito simplesmente: Raul… Porquê então? – poderão vocês perguntar. É simples a justificação.

Mas, antes de ler a justificação, aconselharia o leitor a consultar tudo quanto seja vocabulário onomástico, fiável. Por exemplo: Prontuário Ortográfico e Guia da Língua Portuguesa, Magnus Bergström e Neves Reis, Notícias Editorial; qualquer dicionário, fiável, que contemple a onomástica (nomes próprios). E lá verão Raul sem acento. E porquê? Por via de que regra ortográfica? A regra pode formular-se assim: todas as palavras agudas em que a vogal tónica seja ‘u’ ou ‘i’, precedido de vogal com que não forme ditongo e seguido de consoante que não seja ‘s’, não devem acentuar-se graficamente: Raul, Saul, paul, Abiul, Vermoil, Abigail, Madail (outro nome próprio que espalha por aí acentos, incorrectamente, a torto e a direito…), cair, contribuir, raiz, juiz, etc., etc. Acentuam-se aquelas em que o ’u’ ou ‘i’ tónico, precedido de vogal com que não forme ditongo, for seguido de ‘s’ ou não seguido de qualquer outra consoante: país, caís, caí, contribuí, baú, baús, etc., etc. Acho que chega para convencer o possível leitor. Ou melhor, não se trata de convencer: trata-se, isso sim, de informar, o leitor eventualmente confuso, das regras da ortografia pelas quais nos devemos reger, enquanto estiverem vigentes, pois poderão deixar de o estar se e quando as regras forem alteradas, como acontecerá certamente com algum acordo ortográfico, ou simples reforma unilateral…

Falámos de acentos a mais. Vamos agora falar de acentos a menos. Ou seja, acentos que as regras ortográficas mandam escrever e, vezes de mais, ‘aparecem’ por aí não escritos, especialmente em nomes próprios mas também em nomes comuns. E qual é a regra, então? É simples. Palavras graves terminadas em ‘l’, ‘n’, ‘r’, ‘x’, ‘ps’: Rúben, Cármen, Nélson, Félix, Válter, Vítor, Hélder, útil, cálix, carácter, bíceps, etc., etc. Sim, porque, regra geral, as palavras graves não se acentuam.

E aí temos. Acentos a mais, deixem-se no tinteiro! Acentos a menos, usem-se quando mandam as regras normativas!