Considerações sobre haplologia

Haplologia – “(Gr. Haplóos+logos – palavra simplificada, reduzida). Contracção ou redução dos elementos similares de um vocábulo. Diz-se também da supressão de um vocábulo repetido. Contracção ou redução de duas sílabas semelhantes de um vocábulo, para facilidade da prosódia (p. ex.: bondoso por bondadoso)” (Ver dicionários).

É claro que se trata de um fenómeno linguístico, mais comum do que se possa imaginar. E, antes de prosseguir, quero dizer que este texto me foi sugerido pela leitura da crónica “Um plano alvar” de Fernanda Câncio (in Diário de Notícias, 11/11/11, página 9):

“Não me parece que o discurso da competitividade, tão caro ao ministro Álvaro Santos Pereira (que aliás insiste em articular ‘competividade’ como articula ‘precaridade’ e ‘empreendorismo’), só serve para justificar a entrega dos transportes públicos aos privados – porque, dogma intocável para este Governo, a gestão privada é sempre boa e a pública sempre má.”

Se eu peguei neste parágrafo foi para mostrar que as “articulações” do ministro, ironizadas pela jornalista, não são as formas correctas que hoje se usam na linguagem corrente, mas podem muito bem vir a sê-lo, pelo menos algumas, pois elas têm a ver com o fenómeno da haplologia que acontece primeiro num uso restrito e se vai depois alargando até um belo dia se tornar a forma de uso normal generalizado. Querem ver alguns casos? Como se deve usar (dizer/escrever): caridadoso ou caridoso? bondadoso ou bondoso? piedadoso ou piedoso? E as duas seguintes, registadas, ambas, em dicionários recentes: computadorizar ou computorizar? consultadoria ou consultoria? (Ver Dic. Porto Editora, 2003). Eu, por mim, vou pela consultoria e computorizar. Das “articulações” do ministro, eu usaria, já, pelo menos, competividade e empreendorismo; precaridade, não, porque a norma geral de substantivo em –ade formado de adjectivo em –io é ele terminar em –iedade: contrariedade, piedade, variedade, precariedade.

E, já agora, cuidoso ou cuidadoso? Vejam o que diz o dicionário:

“cuidoso, adj. o mesmo que cuidadoso, hapl.” [abrev. de haplologia, claro] (Dic. Porto Editora 2003).

Pode-se dizer que esta forma haplológica, que foi usada no passado por grandes poetas e escritores (quiçá o próprio Camões), hoje em dia é praticamente um arcaísmo. Contrariando a tendência, calhou-lhe a sorte arcaizante…

Mas não queria terminar sem um último comentário. Na crónica referida, ou alhures, usa-se a linguagem de alguém, que se considera incorrecta, como argumento. Nisso, eu sou contra. E não é porque tenha alguma confiança no que diz o ministro, não: é porque a argumentação contra o que alguém diz perde a força argumentativa se nos virarmos para a linguagem mal dita ou supostamente incorrecta, por muito alvar que possa ser… Não deixará de ser uma espécie de argumento ad hominem, ou, se preferirem, ad sermonem

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